“Nunca saberemos o que perdemos, além de milhares de peças que não foi possível recuperar”. O desabafo é de Vânia Carvalho, arqueóloga da Câmara de Leiria, que, numa visita guiada que fez no local, encontrou o troço da parede rochosa do Abrigo do Lagar Velho, área que começou a ser usada pelos humanos há pelo menos 29 mil anos, destruído.
No chão estavam “paus”, alegadamente usados para escavar a parede, e fragmentos “incontáveis” de ossos, materiais líticos (em pedra), carvões e vestígios orgânicos “preservados”. Ainda foram recolhidas cerca de 500 peças, mas muitas nem foram contabilizadas por só fazerem sentido “dentro de contexto”.
Os danos, que originaram uma queixa-crime apresentada pela Câmara de Leiria, motivaram indignação e várias vozes se erguem a pedir mais protecção para o sítio arqueológico, repetindo apelos feitos, há anos, pela comunidade científica.
Lamentando os “danos irreparáveis” no sítio, Ana Cristina Araújo, uma das arqueólogas que dirige os trabalhos de investigação no local, não poupa críticas à Direcção-Geral de Património Cultural (DGPC), que acusa de “negligência”.
Em causa, alega, estão os “sucessivos” pedidos que fez à tutela para que fosse encontrada uma solução para proteger o troço de parede vandalizado, mantendo-o “visível”, que ficaram sem resposta. “Os alertas nunca foram tidos em consideração”, critica.
Agora, “perdeu-se uma vitrina natural, onde as pessoas conseguiam ter a percepção do tempo estratigráfico, de como os sedimentos e artefactos se acumularam ao longo dos tempos e de como o Homem usou a natureza”.
O JORNAL DE LEIRIA confrontou a DGPC com as críticas, mas não obteve resposta, ficando ainda sem saber se a tutela está a ponderar adoptar medidas de protecção ao sítio. Também a câmara aguarda uma reunião com o director-geral do Património Cultural, “no sentido de perspectivar, em termos de futuro, o que se pode e deve fazer”.
Na reunião de câmara desta terça-feira, Anabela Graça, vice-presidente da autarquia e vereadora da Cultura, defendeu a necessidade de, “em parceira com as autoridades competentes”, se tomarem “medidas com vista à segurança em torno de um dos mais emblemáticos sítios que integram o património arqueológico de Leiria, que é reconhecido internacionalmente”.
“Toda a área pertence ao domínio de propriedade privada e, portanto, há que ter em conta todos esses condicionalismos”, sublinhou a autarca, convicta, contudo, que a situação actual “acabou por fazer com que se reflectisse sobre a segurança daquele sítio”. No seu entender, as entidades que tutelam o património terão de, em articulação com a autarquia, encontrar uma solução porque têm essa responsabilidade”.
Aquisição é “um dossiê em aberto”
Em reacção aos acontecimentos, várias forças políticas defenderam a aquisição do terreno onde se encontra o sítio arqueológico do Abrigo do Lagar Velho, classificado como património nacional.
O PCP considera mesmo que a passagem dos terrenos para o património do Estado é “uma emergência”. Em comunicado, a organização regional de Leiria do partido, alega que a propriedade privada dos terrenos “tem sido um obstáculo ao desenvolvimento dos trabalhos na dimensão e intensidade que se impunha” e “um sério impedimento para o imprescindível investimento do Estado”.
Também a concelhia do PSD defende a aquisição da parcela onde está o sítio arqueológico, “garantindo assim a sua segurança, e que a investigação deste achado continue a avançar com as mais dignas condições”.
Por seu lado, os vereadores sociais-democratas pedem “um plano a longo e a médio prazos com reforço de RICARDO GRAÇA meios humanos e financeiros na descoberta, estudo, protecção e promoção” do Vale do Lapedo. Entendem ainda ser “necessário um apoio maior, por exemplo no financiamento para a datação dos achados arqueológicos e nos melhoramentos e protecção” do sítio arqueológico, bem como num centro de interpretação “digno”.
Em resposta às críticas dos vereadores da oposição, Anabela Graça destacou o trabalho de “valorização, orientado não só para a interpretação do Vale do Lapedo”, mas também de investigação, que tem sido feito com o apoio financeiro da autarquia. Em relação à eventual aquisição do terreno, a vereadora da Cultura admite ao JORNAL DE LEIRIA que este “é um dossiê que está em aberto” e que “o município pretende encontrar a melhor solução que garanta a salvaguarda do património, mas sempre em articulação com a DGCP”.