Arriscam a vida sem pensar. O que os move é a protecção do próximo e foi isso que todos os bombeiros envolvidos no combate ao incêndio do passado dia 15 de Outubro fizeram ao longo da linha de costa, entre as localidades de Burinhosa (Alcobaça) e do Carriço (Pombal). Uma viatura dos Bombeiros Voluntários de Leiria foi consumida pelas chamas, na zona do Grou, perto do Coimbrão, e o mesmo sucedeu com o veículo dos Bombeiros Municipais de Leiria, em Água Formosa, perto de Moinhos de Carvide. Os bombeiros conseguiram fugir das chamas, mas não ganharam para o susto.
“Por momentos pensei que era daquela vez”. A frase é de Nelson Pereira, 43 anos, chefe da equipa dos cinco elementos da 6.ª companhia dos Cardosos dos Voluntários de Leiria, que perderam o veículo de combate a incêndios. Este grupo foi solicitado para tentar proteger uma casa que estava em perigo. Depois de calcularem todas as condições de ataque às chamas foram para a frente de fogo, mas “de repente houve uma reviravolta e o veículo parou”.
Quando viram que não tinham hipóteses de sair dali com a viatura, fugiram como puderam. “Foi muito complicado. Temi pela vida”, confessa, adiantando que foi a primeira vez em quase 20 anos de voluntário que pensou que poderia não sobreviver.
O fumo intenso tornou-os ‘cegos’ e desorientou-os. “Não se via nada a cinco metros. A equipa esteve semprejunta e foi o que nos salvou. O comandante adjunto foi ao nosso encontro e saímos para um local seguro”, conta ainda Nelson Pereira. Os breves segundos em que sentiram o calor das chamas e o fumo intenso pareceram horas. “Apesar de termos formação, quando ficamos sem ver há sempre alguma desorientação e nesse momento não se pensa em nada. São segundos que parecem uma eternidade a passar. Só depois de estarmos todos a salvo no jipe é que pensei na família e em tudo o que ficou no carro.”
Resgatados para o quartel de Monte Redondo, receberam apoio psicológico e os ‘mimos’ do comandante Luís Lopes pelo telefone. “Apesar de jovem, é um homem que está do nosso lado e nos deixa ‘derretidos’”, desabafa, com a voz embargada pela emoção.
O inferno do fogo
[LER_MAIS] Nelson Pereira afirma que já participou no combate a diversos incêndios, mas o do dia 15 parecia mesmo um inferno. “Tudo acontecia muito rápido. O vento e o tempo quente contribuíram para as chamas traiçoeiras. A nossa preocupação era salvar as casas e as pessoas, pois tínhamos consciência que não havia meios para apagar o incêndio.”
Depois de toda a adrenalina vivida nessa noite, Nelson Pereira ‘quebrou’ quando chegou perto da família. Casado e pai de um menino de 10 anos, pensou em tudo o que podia acontecer. Admite que é um herói para o filho e lamenta o pouco tempo que lhe dedica.
Motorista de pesados, abdicou das rotas internacionais, apesar de serem mais bem remuneradas, para ter disponibilidade para os bombeiros. O susto não o fez desistir. “No dia seguinte já estava pronto para regressar.” Dos cinco elementos, com idades entre os 20 e os 47 anos, registou-se um ferido ligeiro.
Projecções à retaguarda obrigam a fuga
Leonardo Pereira, que integrava a equipa de quatro elementos dos Municipais de Leiria, cuja viatura também foi consumida pelas chamas na noite de 15 de Outubro, garante que foram a preparação física e a formação adquirida que salvaram o grupo.
Enviados para Água Formosa, em Moinhos de Carvide, para proteger habitações em risco, os bombeiros fizeram o reconhecimento da área e os meios foram posicionados na zona. Aguardaram que o fogo chegasse ao seu encontro. “Quando há contacto com a frente de fogo surgem projecções à retaguarda com alguma intensidade”, conta Leonardo Pereira, acrescentando que as altas temperaturas e a rapidez de propagação do incêndio os obrigaram a abandonar o local.
A viatura acabou por se imobilizar e os bombeiros tiveram de fugir. O fumo cerrado desorientou-os e “gerou-se algum pânico”, apesar de o grupo manter-se unido e procurar uma saída. Todos conseguiram, pouco depois, chegar perto de uma casa, onde se refugiaram até à chegada dos meios de apoio.
“O objectivo era sair dali. A adrenalina estava ao máximo e tentámos controlar o pânico. Os bombeiros são pessoas e também têm medo, mas a sua formação ajuda-os a enfrentar estas situações complicadas. O veículo foi abandonado, sobretudo, pela fraca visibilidade”, frisa Leonardo Pereira.
Foi depois de estar em segurança que o bombeiro profissional pensou em tudo o que passou. “Tive a real noção da importância fundamental da formação, da nossa preparação física e dos equipamentos de protecção individual. Estávamos em terreno de areia, com uma grande intensidade de calor e conseguimos fugir rapidamente. Houve apenas queimaduras num bombeiro, mas devido ao calor do fato em contacto com a pele.”
Regressados ao quartel, todos voltaram ao activo pouco depois. “Não havia mãos a medir para as ocorrências. Tirando o bombeiro que teve de receber tratamento, todos nos disponibilizámos de imediato para voltar ao terreno.”
Não foram para o grande incêndio, mas acorreram a outras chamadas de socorro que continuaram a cair na linha dos Municipais. “Estamos nos bombeiros porque gostamos muito do que fazemos. Não é o dinheiro que nos motiva, mas como diz o lema, é ‘a vida pela vida’. É a entrega à causa pública e temos esse espírito de missão, que nasce connosco. Sabíamos que não iríamos extinguir o incêndio, porque não tínhamos condições, mas a preocupação era salvar as pessoas e bens.”
“Não 'gozem' com os meus bombeiros”
O comandante dos Bombeiros Voluntários da Marinha Grande, Vítor Graça, enviou uma carta aberta ao ministro da Agricultura, na qual exige que o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) cumpra as suas funções. "Infelizmente, observo que continuamos a ser desrespeitados enquanto operacionais, com impacto nas nossas vidas pessoais e familiares, por entidades com rostos e nomes, que existem, não cuidam nem cumprem o que está legislativamente escrito. E é nesse sentido que esta carta surge, pedindo por favor para que quem tem essas responsabilidades que as assuma e execute, e que acima de tudo não 'gozem' com os meus bombeiros." Vítor Graça refere que a “vigilância pós-rescaldo está determinada, quer sob a forma de lei, quer nas Directivas Operacionais Nacionais, que deverá ser realizada por sapadores florestais (ICNF-Matas Nacionais, na nossa área)”. “É triste que descarreguem mais esse fardo e responsabilidade, em quem anda exausto, não lhe compete assumila, não é dono, tem que assegurar todos os outros serviços operacionais, e tem que recuperar energias, pois os alertas não prometem descanso", acrescenta o comandante. Também Paulo Vicente, presidente da Câmara da Marinha Grande que terminou funções ontem, disse estar "preocupadíssimo" com a falta de vigilância do ICNF, que “tem a responsabilidade da vigilância após o rescaldo dos incêndios e não o está a fazer”. “Se não têm pessoal, contratem-nos, porque nós também não temos. Os nossos bombeiros estão exaustos." O JORNAL DE LEIRIA tentou obter uma reacção do ICNF, mas até ao fecho da edição não houve resposta. À Lusa, o presidente do ICNF, Rogério Rodrigues, refutou as queixas, mas admitiu que, dada a dimensão dos incêndios, possa existir alguma "pequena" falha por falta de recursos, mas "nunca porque os sapadores desarmem daquilo que é a sua actividade diária".