Meu Caro Zé,
Conheces-me bem e saber que eu tenho a mania de procurar ligar vários acontecimentos e pontos de vista que, de vez em quando, me levam a um sincretismo, do qual não me consigo libertar adequadamente.
Desconfio que é o que ora acontece nesta conversa, pelo que, desde já, te peço desculpa a ti e a quem tiver a paciência de me ler.
Como sabes, leio vários livros ao mesmo tempo, de épocas diversas e, frequentemente encontro profundas semelhanças e consequentes preocupações. Assim, ao ler Ler Lolita em Teerão, de Azar Nafisi (2003), encontrei a frase seguinte: “Na rua, à minha direita, havia uma citação do Ayatollah Khomeini em grandes letras negras: Esta guerra é uma grande redenção para nós”.
Lembrei-me, de imediato, de Elias Canetti (1960) que, em Massa e Poder, escrevia: “… os primeiros dias de agosto do ano de 1914 são igualmente o 'momento de geração' do nacional-socialismo.
Quanto a isso há um testemunho insuspeito, o de Hitler: ele relata como, depois de rebentar a guerra, caiu de joelhos e agradeceu a Deus.”
No fim-de-semana, veio a notícia de que o líder norte-coreano ia suspender os ensaios nucleares e uma enorme sala cheia de gente batia freneticamente as palmas ao “grande líder”, os mesmos que, pouco tempo antes, batiam também freneticamente as palmas quando ele anunciava mais um sucesso de um ensaio nuclear.
Que há de comum nisto tudo? A presença de ditadores que usam a guerra ou os conflitos para dominar a “massa” que deixa de pensar para seguir slogans ou emoções “patrióticas” demarketing quase perfeito.
E, ao pensar nisto, veio-me à lembrança, novamente, Azar Nafisi quando refere ter ficado estupefacta por um grande número das suas alunas, no exame, terem transcrito, palavra por palavra, aquilo que ela dissera na aula sobre um dado tema.
Pensou que era “copianço” mas as colegas mais experientes depressa lhe explicaram que “era prática usual as alunas memorizarem tudo o que os professores diziam e, a seguir, reproduzirem-no sem alterar uma única palavra.”
[LER_MAIS] Zangada com as alunas, deu-lhes um “sermão”. Só que, no fim, uma delas, que não tinha tido essa atitude, a confrontou dizendo que ela, professora, devia antes “pensar na causa disto tudo… Nunca ninguém as valoriza e a senhora chega e confronta-as, acusando-as de trair princípios que nunca ninguém lhes tinha ensinado a valorizar. Devia ter mais cuidado!”
Este “devia ter mais cuidado” tem todo o sentido hoje, como o tem a busca das causas disso. A recente entrevista ao Público”do filósofo italiano Massimo Cacciari dá um bom ponto de partida para a discussão.
À pergunta do jornalista: “Abandonar os princípios teológicos é, então, negar a política…” ele responde: “Quando a política elimina a teologia política, torna-se a administração.” E mais adiante: “É que a política já não sabe indicar um fim. Então, deixamos governar a potência técnico-económica. E daí advém a situação trágica da crise.”
Frei Bento Domingues (Público) agarra o tema e remata: “Estabelecer a lista completa das possibilidades (dos homens), mediante a técnico-ciência é o desejo da morte do desejo”. E, digo eu, que melhor explicação para o curto prazo e para a adesão das “massas” ao “já”?
Até sempre,
*Professor universitário
Texto escrito de acordo com a nova ortografia