Os dossiers com as amostras dos tecidos da estação chegavam pontualmente às quintas-feiras. O carteiro assomava cansado ao limiar do portão com o peso das caixas atadas com cordel de sisal. A encomenda chegava do Porto.
O logotipo era solene, quase aristocrático – Armazéns Marques Soares. Dentro das caixas amontoavam-se umas boas dezenas de catálogos cheios de pequenos retalhos de tecido – as fazendas de escocês para o Inverno, as cachemiras para os sobretudos destinados a uma quase vida, as cambraias, as sedas e as popelinas para as blusas ocasionais.
E o catálogo dos tecidos infantis em que fui todas as personagens dos livros que li durante a infância. A moda imaginava-se a partir de quadradinhos de pano. E ao colo da minha mãe aprendi que, tal como na roupa, a qualidade de uma vida depende da matéria-prima e do recorte que procuramos dar-lhe.
Seguia-se a ida à costureira com a pré-selecção de quadradinhos de pano já feita. Nos figurinos procurava-se não o que lá estava, mas aquilo que se levava imaginado.
O encontro entre o imaginário e a realidade nem sempre era fácil. E o arrojo da imaginação sucumbia sempre à austeridade do corte dos anos 70.
Seis metros de escocês para o vestido rodado, cinco metros de fazenda de lã para o casaco a três quartos e meio metro de veludo azul-escuro para um certo toque requintado que a qualidade da fazenda do casaco pede.
[LER_MAIS] A encomenda seguia em papel de carta para o escritório central dos quase aristocráticos armazéns Marques Soares e os tecidos chegavam pouco tempo depois anunciando nova ida à costureira.
Ia pela mão da minha mãe e tinha de ficar muito quieta enquanto a fita métrica me media o corpo assimétrico da infância.
Ainda assim, no penoso dia da prova, não era a realidade que eu via reflectidano espelho, mas o cenário onde os pequenos retalhos de tecido me tinham levado no dia da chegada das caixas, entregues pela mão do carteiro no limiar do portão de ferro do jardim.
E nem astemíveis picadas dos alfinetes a cingir o corte à medida justa do corpo me faziam acreditar que eu não era a Jo das Mulherzinhas da Louisa MayAlcott. "Está pronto daqui a duas semanas.", anunciava a costureira.
A demora intensificava ainda mais o imaginário onde passaria a viver no dia em que vestisse o vestido novo. O cabide com a roupa vinda da costureira chegava pelas mãos da mãe e ia directo para o guarda-fatos.
Nos anos 70 o imaginário podia chegar apenas ao domingo e com regras de utilização férreas ditadas pela economia imposta pelos tempos. Mas uma vez por semana, ao espelho, com o vestido novo, consegui ser tudo o que aqueles quadradinhos de pano prometiam.