Que farás tu, meu Deus, se eu morrer?
Sou o teu cântaro (quando me quebrar?)
Sou tua bebida (quando me estragar?)
Sou o teu manto e o teu operar
comigo tu o teu sentido vais perder.
Depois de mim não tens casa que restou
Com palavras próximas e calorosas para te saudar.
Cai dos teus pés cansados, sem se levantar,
a sandália de veludo que eu sou.
O teu grande manto de ti se vai desprender
O que eu em minha face, o teu olhar.
como almofada, com calor, costumo acariciar,
virá, buscar-me-á, sem desfalecer…
E ao pôr do sol irá procurar
descanso em pedras estranhas.
Que farás tu, meu Deus? Tremem-me as entranhas.
Rainer Maria Rilke, O Livro das Horas
Conheci-o por acaso em 2013. À chegada à cidade em estado de emergência com a opção «morre ou morre» na mão, a ocorrência levou-me até à bata branca com que me recebeu. Desconfio por defeito de médicos e de deus, que me perdoem os que não conheço, mas já fui traída pelo acaso que afinal nos colhe a todos. Não me ofereceu certezas e sublinhou a hipótese que já trazia. As opções eram essas.
A vida, a morte e o sofrimento, no bloco operatório ou fora dele, tinham exactamente o mesmo peso e a decisão, por incapacidade, não podia ser tomada pelo próprio.
A clarividência tende a turva-rse a quando a ciência não responde e as decisões tomam-se alicerçadas na incerteza da esperança e no meio de uma encruzilhada onde se misturam a dúvida, o amor, o medo, o desespero e a culpa.
Da sua voz saiu apenas a certeza da habilidade no seu ofício e da compaixão que deve estar presente quando se abre um corpo doente. O caminho do bloco operatório pareceu-nos, juntos, o menos turvo.
Testemunhámos, desconfortáveis, a [LER_MAIS] leitura do texto do Termo de Consentimento Informado que exigia uma assinatura por procuração – «Recebi todas as informações necessárias quanto aos riscos, benefícios e alternativas do procedimento proposto. Tive a oportunidade de fazer perguntas, e todas foram respondidas satisfatoriamente. Compreendo que durante o procedimento poderão apresentar-se outras situações ainda não diagnosticadas, assim como poderão ocorrer situações imprevisíveis.»
A cirurgia, radical, demorou. A meio do percurso chamou. Anunciou-nos que o coração chegou a falhar mas que os tentáculos do tumor eram curtos e que conseguira aparentemente retirá-los.
À falta de palavras e actos para lhe agradecer a verdade com que me foi narrando o processo, levei-lhe um livro – A MÃO QUE NOS OPERA do cirurgião Atul Gawande – um relato brilhante sobre a ética no exercício da Medicina.
Agradeceu-me dizendo-me que andava na altura ocupado a ler o Ética de Bento de Espinosa e naquele lapso de tempo em que o aparato de máquinas da ciência nos alivia o medo de que o coração volte a falhar trocámos algumas referências de livros.
O sentimento de gratidão com que se fica por quem nos adia as perdas passa a acompanhar-nos até ao fim dos dias como todos os outros acontecimentos indeléveis da biografia.
Visitamo-nos uma vez por ano para a consulta de rotina que confirma que a opção pelo caminho inicialmente turvo do bloco operatório foi a que trouxe menos danos.
Trocamos sempre uma outra referência de livros sob o olhar quase ausente do paciente que me conduziu ao consultório onde me recebeu de bata branca e trocamos sempre por altura das festas um poema.
Este ano enviou-me o que abre este texto. Bom Ano.
*Assessora de imprensa