Pela manhã, olha pela janela e percebe como o dia está magnífico; tão magnífico que, ao sair à rua, não resiste a levar o guarda-chuva consigo. Desce pelo passeio quase deserto sentindo a brisa no rosto e o sol brilhante na pele.
Espreita as pessoas com quem se cruza, não tanto os rostos ou olhares mas as mãos, interessam-lhe as mãos; olha-as na esperança de encontrar numa delas um guarda-chuva. Foi por isso que saiu de casa: porque o dia está magnífico, tão magnífico que apetece apaixonar-se.
Vai caminhando sem pressa, há quem olhe e estranhe, há quem ignore. E claro que é prematuro falar em paixão.
Primeiro há que encontrar alguém com um guarda-chuva na mão e que, por isso, o perceba, intua de imediato os seus motivos. Alguém a quem não seja necessário explicar o que sente.
Alguém que compreenda o que simboliza andar com um guarda-chuva num dia em que não existe a mais pequena possibilidade de chover. Alguém que, por exemplo, não banalize uma relação como se banaliza o uso do guarda-chuva, que logo se esquece, abandona ou perde mal o sol chega.
Alguém que não coleccione relacionamentos por acreditar que a quantidade é uma protecção, como as pessoas que acumulam vários guarda-chuvas para nunca serem surpreendidos quando a intempérie surge inesperadamente mas, depois, nem os distinguem uns dos outros.
Alguém que não procure um relacionamento a pensar nos momentos solitários e guarde a felicidade apenas para si, como aquelas pessoas que ignoram os guarda-chuvas quando não precisam deles, abandonando os à porta de casa, e que no fundo acreditam que até podem passar sem eles.
[LER_MAIS] Alguém que não queira ter um guarda-chuva e prefira ser guarda-chuva. Pensa como seria bom encontrar alguém que sentisse e pensasse igual; alguém que já conhecesse profundamente antes de saber, sequer, que existe. Mas a manhã ainda mal começou, é demasiado cedo para paixões.
Caminha sem pressa nem ansiedade, olhando em frente; à espera do que possa acontecer. E talvez não seja ainda hoje que se cruze com alguém que sorria e pergunte: “Queres ser o meu guarda-chuva?”
Mas a verdade é que há sempre algo a acontecer: basta estar atento, basta saber reconhecer; ser activo e, principalmente, receptivo. Tudo pode acontecer, apesar de raramente se conseguir originar ou provocar algo.
Limitamo-nos a reconhecer e aproveitar algumas das coisas que nos aparecem pela frente, por vezes agarramo-nos a elas e fazemo-las nossas. Como uma criança que vai ao centro comercial acompanhado pela mãe: encontra lá tudo o que possa desejar, deambula pelos corredores e ambiciona, pedincha, fantasia, implora, desdenha; tudo está disponível e é alcançável, tudo está à distância de um toque; sente-se feliz, porque a felicidade reside na existência de opções, de escolhas, de possibilidades.
Mas a mãe – já se sabe como são as mães – apenas oferece um chupa de morango e a criança – já se sabe como são as crianças – coloca-o na boca e saboreia; talvez até acabe por agradecer, logo esquecida de todas as possibilidades adiadas.
E é isso, afinal, a vida: um chupa de morango.
*Escritor