Na próxima edição do Festival Literário de Fátima – Tabula Rasa, que acontece entre 28 e 30 de Novembro, o grande tema analisado será a relação entre a Literatura e o Jornalismo. Até que ponto, estas duas correntes das letras, semelhantes na natureza, porém diferentes na objectividade, se podem tocar?
No primeiro festival, o tema foi a Literatura e a Filosofia, o segundo foi a Literatura e o Sagrado. Nesta terceira edição, parece-nos que atingimos o casamento perfeito porque há escritores consagrados que iniciaram a sua carreira como jornalista. Há diferenças necessárias entre a escrita jornalística e a literária, com a primeira a ser mais objectiva e atenta aos factos, a segunda tem outra liberdade. Porém, o jornalismo foi e continua a ser uma grande escola de escritores. Posso dar o exemplo de Eça de Queirós, que é um dos maiores escritores portugueses de todos os tempos e começou a sua vida literária como jornalista a fazer a cobertura da abertura do Canal do Suez, que este ano, celebrou 150 anos.
Perante o problema das falsas notícias, da desinformação, dos factos alternativos, o jornalismo ainda é uma profissão admirada?
Julgo que sim. Com o acesso facultado à informação promovido pela Internet, pelas redes sociais, pelas plataformas noticiosas, gerou-se uma grande concorrência ao jornalismo clássico e isso tem levado, de facto, a um panorama que lhe é cada vez mais adverso. Actualmente e no futuro, continuará a ser necessária uma filtragem, perante a avalanche de informação e de opiniões e de falsas notícias. São necessárias entidades credíveis que façam essa filtragem entre o que é falso e o que é objectivo. Nesta edição do festival, teremos momentos de debate, como, por exemplo, aquele que será coordenado pelo Nuno Pacheco, que foi um dos fundadores do jornal Público. Este evento procura fazer uma radiografia do estado do jornalismo no nosso País e nos países e regiões de língua portuguesa, com convidados desses locais, dando-lhe uma dimensão internacional e lusófona. Este festival é uma grande prenda que a Junta de Freguesia de Fátima, que é o promotor, dá aos seus fregueses e em particular aos jovens.
Um dos painéis aborda o jornalismo regional, aquele que tem contacto directo com as populações.
O festival tem esse espectro modelar. Além da dimensão internacional, não renega a radicação local que é fundamental. A imprensa local, regra geral, é mais livre, menos condicionada pelos grandes interesses económicos que, muitas vezes, ditam as agendas noticiosas. Como leitor de jornais, sigo também o percurso de alguma imprensa regional e verifico que até a Opinião publicada nos jornais de referência está, cada vez mais, formatada, e é curioso verificar que a que é mais dissonante e politicamente menos correcta aparece mais facilmente em jornais de âmbito regional do que nos de âmbito nacional.
Este ano, o Tabula Rasa está mais regionalizado e estende-se aos concelhos limítrofes.
É um caminho que temos trilhado. À medida que o evento se tem consolidado, é mais fácil chamar pessoas com grande credibilidade e visibilidade pública. Na segunda edição, tivemos figuras como o professor Adriano Moreira e Guilherme d’Oliveira Martins e isso é um reconhecimento da importância crescente do festival literário. Nesta terceira edição, teremos connosco o professor e Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Como corolário, este festival ganha também impacto nos municípios circundantes. Queremos fazer deste festival um evento relevante na freguesia de Fátima e na área do município de Ourém, mas queremos também que seja marcante em toda a zona Centro. Daí que tenhamos promovido a associação de várias autarquias vizinhas e pensamos que, nos próximos festivais, esse espectro municipal se irá alargar ainda mais.
Fernando Dacosta irá receber o Prémio Vida e Obra, este ano.
Na primeira edição ele foi para Eduardo Lourenço, que esteve presente, no segundo, em 2017, o premiado foi Pinharanda Gomes, uma grande figura da nossa cultura, que, entretanto, faleceu, tendo, em Outubro, quando faria 80 anos, sido agraciado com a Grande Cruz da Ordem de Santiago pelo Presidente da República. Neste terceiro festival, o premiado é o jornalista e escritor Fernando Dacosta. A escolha teve que ver com a temática desta edição. Eduardo Lourenço foi o vencedor na primeira edição. Ele é um pensador e autor que escreve sobre os grandes escritores como Fernando Pessoa, Teixeira de Pascoaes ou Sophia de Mello Breyner e faz a ponte entre a Literatura e a Filosofia. Na segunda, procurámos quem fizesse a ligação com o Sagrado, nas várias dimensões, e a escolha foi Pinharanda Gomes, que é, talvez, o maior historiador da cultura religiosa em Portugal. Já Fernando Dacosta é um um autor consagrado, com um trajecto à prova de bala. Nos outros prémios, de Ficção, Literatura Infanto-Juvenil, Poesia, temos atribuído o galardão a pessoas mais jovens, como Nuno Júdice ou Gonçalo M. Tavares. Já temos um histórico importante, que nos eleva a fasquia.
Há algum tempo, escreveu um texto no Público a que chamou Azia Anti-Lusófona. Existem correntes de pensamento que colocam em causa o sonho do Quinto Império, do professor Agostinho da Silva?
No Público, escrevi um outro texto que é consonante com esse, que se intitulava Falso Consenso em Torno da Lusofonia. Tenho falado muito sobre o tema e tenho sido convidado a abordar publicamente o tema, enquanto presidente do Movimento Internacional Literário. O que verifico é que, com honrosas excepções, na classe política, há uma retórica pró-lusófona naqueles feriados mais relevantes, como o 10 de Julho ou o 5 de Outubro, onde os nossos políticos gostam de tecer loas à Lusofonia, de citar Fernando Pessoa e de dizer que “a minha Pátria é a Língua Portuguesa”, mas o que verificamos é que não se dão passos muito consequentes, em prol da valorização de facto e concretamente dessa convergência dos países ou regiões dos espaço de Língua Portuguesa. Por outro lado, não há muita gente a pronunciar-se contra a Lusofonia… Há quem levante fantasmas do passado, como se a Lusofonia tivesse que ver, essencialmente, com o passado e fosse um projecto neocolonialista, sendo que a répli ca é bastante simples: “quando se fala de Lusofonia, fala-se da língua e do seu estatuto enquanto língua oficial em diversos países. Se, em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Timor-Leste, o idioma oficial é o Português, isso não decorre de uma imposição portuguesa, mas da vontade expressa das autoridades legítimas de cada um desses países”. É o primeiro argumento contra esses fantasmas. Dito isto, sabemos que há um grande caminho a fazer, porque também há feridas históricas… houve uma guerra…
Já passou quase meio século desde o fim da guerra.
Estas feridas demoram muito a cicatrizar. Essa página está-se a virar e os sinais que vamos recebendo mostram que entre as gerações mais novas [LER_MAIS]há essa sensibilidade e a ideia de que não escamoteando o que de menos bom se passou, isso pode ser um princípio de caminho de futuro, na premissa de que a nova via interessa a todos. Obviamente, no século XXI não faz qualquer sentido pensar que Portugal possa impor o que quer que seja… Ou que o Brasil, que é um país muito maior, o também possa fazer. Este caminho de cooperação entre países e regiões de língua portuguesa far-se-á, na exacta medida em que esses territórios se empenhem e compreendam a mais-valia que é para cada um deles, esse desígnio estratégico. Não é por acaso que se multiplicam os eventos de dimensão lusófona, desde há dez anos. Começa a ser banal abrir um jornal ou ver, num noticiário, algo sobre um encontro de “médicos lusófonos”… Há dez anos, isso não acontecia. Há 15 muito menos. A palavra “Lusofonia” é recente! Ainda há um grande caminho a fazer, pois a Lusofonia é um desafio para maratonistas e não para velocistas. E há outros fantasmas. Há quem diga que quem defende a Lusofonia é contra a Europa. Obviamente, são dimensões complementares. Portugal deve assumir-se dentro das dimensões europeia e lusófona. Será tanto mais forte na Europa e no espaço lusófono, quanto mais assumir essa dupla condição. Portugal é um país europeu que tem uma tradição cultural e civilizacional europeia, que não renega, pelo contrário orgulha-se dela, mas isso não implica desprezo e afastamento dos povos que partilham a nossa língua, história e cultura.
Enquanto vice-presidente do Nós, Cidadãos!, agradar-lhe-ia ver a criação de uma Secretaria de Estado ou Ministério da Lusofonia em Portugal, que aprofundasse e criasse mais mecanismos de cooperação?
A Lusofonia é uma questão transversal a diversos ministérios; Negócios Estrangeiros, Cultura, Economia… E atravessa entidades como o Instituto Camões ou a CPLP… É claro que os nomes são importantes e quando um Governo quer valorizar uma área, atribui-lhe o nome ao ministério. O Ministério do Mar é um desses casos. Não me chocaria nada se houvesse um secretário de Estado ou ministro da Lusofonia e seria interessante, simbolicamente. Compreendo que o contexto, hoje, não é o mais propício, apesar de, em Angola, os sinais serem mais promissores, com a mudança do presidente. Mas durante muitos anos, com o anterior presidente, as relações não estavam bem. Recorde-se os célebres editoriais do Jornal de Angola. Se bem que isto também pode ser lido de outra forma: só ficamos magoados com quem nos é próximo. Sentimo-nos afectivamente ligados aos angolanos e aos povos de Língua Portuguesa. É por isso que certas questões ganham uma relevância que não ganhariam com outros países. Se houvesse um litígio diplomático com um país nórdico, seria tratado friamente pela diplomacia. É um pouco a diferença na relação que temos com a família e com os vizinhos. Exactamente. No Brasil a situação política também não é fácil, como sabemos, e o contexto, neste quadro geral, não é o mais propício. Por outro lado, se há povo que compreende a força e mais-valia da Lusofonia é o timorense. Timor-Leste foi invadido pela Indonésia, que tentou erradicar a língua e cultura portuguesas. Mas o país resistiu. Houve quem pegasse em armas e desse o corpo às balas, mas também resistiu porque tem uma língua e cultu ra diferentes. O país teve apoios internacionais, na ONU, dos povos que partilhavam esse legado, com Portugal à cabeça. As alianças transnacionais que mais resistem ao longo do tempo, são as que se alicerçam na mesma língua, história e cultura. As que se alicerçam em afinidades ideológicas podem desabar de um dia para o outro. Veja-se o exemplo do Pacto de Varsóvia, que foi, porventura, o maior pacto político-militar de toda a história da Humanidade. Desabou de um dia para o outro.
Durante o Tabula Rasa, será apresentado mais um número da revista Nova Águia. Que balanço faz destes 24 números da publicação?
Sou suspeito, por ser director da revista, mas há muita gente a pronunciar-se e a dizer que é um projecto meritório. Não é a única revista cultural do País, mas é a única que pretende valorizar a dimensão da cultura Lusófona plural e polifónica. Em todos os números damos voz a autores lusófonos não portugueses. Porém, não tem sido fácil este trabalho. Os interesses económicos determinam a marca edito rial das publicações e não queremos estar-lhes subordinados e queremos manter a Nova Águia independente, autónoma e autosubsistente, embora já tenhamos recebido algumas propostas. Damos voz a grandes talentos no ensaio, na poesia e estabelecemos pontes entre a História, a Literatura, Filosofia e outras áreas da cultura. Neste 24.º número, relativo ao segundo semestre deste ano, há dois destaques. Fazemos uma homenagem a João Bigotte Chorão, uma grande figura da crítica literária, em Portugal, um grande camiliano que foi a grande referência do estudo da obra de Camilo Castelo Branco e pai de Pedro Mexia, que também irá estar no Tabula Rasa, numa edição especial do Governo Sombra e, sem revelar o nome, o Prémio de Ficção do 3.º Tabula Rasa inscreve-se numa linha camiliana e barroca. Voltando à Nova Águia, teremos também uma secção dedicada a Afonso Botelho, figura que escreveu contos, algumas peças de teatro e tem uma obra importante no âmbito da crítica literária e da reflexão.
Apaixonado pelo pensar
Renato Epifânio, comissário do Tabula Rasa, é docente universitário, membro do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto, da Direcção do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, da Sociedade da Língua Portuguesa e da Associação Agostinho da Silva; investigador na área da Filosofia em Portugal, com dezenas de estudos publicados. Desenvolveu um projecto de pós-doutoramento sobre o pensamento de Agostinho da Silva, com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, além de ser responsável pelo Repertório da Bibliografia Filosófica Portuguesa. É licenciado em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tendo-se doutorado, na mesma Faculdade, com a tese Fundamentos e Firmamentos do pensamento português contemporâneo: uma perspectiva a partir da visão de José Marinho e é autor de inúmeras obras. Dirige a Nova Águia: Revista de Cultura para o Século XXI e a Colecção de livros com o mesmo nome. É presidente do Movimento Internacional Lusófono e vice presidente do partido Nós, Cidadãos!