Foram anunciadas como as primeiras avenidas ‘tecnológicas’ de Leiria, com um conjunto de inovações projectadas para o futuro. Mas, no presente, as obras nas avenidas Nossa Senhora de Fátima e General Humberto Delgado, em Leiria, têm-se revelado um verdadeiro suplício para moradores e para os cofres do Município, com derrapagem nos prazos e nos custos.
Adjudicada por 2,4 milhões de euros (acrescidos de IVA), a empreitada soma já cerca de 1,2 milhões de euros (valor com IVA) de trabalhos a mais, ou seja, um aumento superior a 40% face ao valor inicial.
Em relação ao prazo, estavam contemplados 540 dias para a execução da obra, iniciada em Novembro de 2019. Mas, com as duas prorrogações já aprovadas pelo Município, os trabalhos demorarão, no total, mais de 1000 dias, ou seja, quase o dobro do previsto. Isto, se o novo prazo fixado para a conclusão da obra – até ao final deste ano – for cumprido.
Na origem destas derrapagens estão, segundo as explicações da Câmara, “falhas no cadastro”, que provocaram erros no projecto. Algumas dessas lacunas já tinham sido detectadas há um ano, no decorrer da intervenção na Avenida Nossa Senhora de Fátima, que obrigaram à aprovação do primeiro lote de trabalhos complementares, no valor de 650 mil euros (mais IVA).
Falhas semelhantes (ver caixa) foram identificadas agora nas obras da avenida General Humberto Delgado e no que falta executar da empreitada, [LER_MAIS]que forçaram a novos trabalhos orçados em cerca de 510 mil euros (mais IVA).
“Da análise efectuada foi também possível efectuar poupanças no valor de 178.914,45 euros, do que resulta um investimento de 330.127,05 euros”, sublinha um comunicado da Câmara, onde é referido que, com este reforço de verba, será possível “garantir a total qualidade numa intervenção que se assume de crucial importância para a melhoria da qualidade de vida” nesta zona da cidade.
“Ou fazíamos os ajustes agora ou os trabalhos ficavam mal feitos. A nossa opção é a de fazer, mesmo que cause transtornos”, alegou o presidente da Câmara, Gonçalo Lopes, durante a última reunião de executivo, onde foram aprovados os segundos trabalhos complementares, com o voto contra dos vereadores do PSD.
Na ocasião, tanto o líder do Município como o vereador das Obras, repetiram os argumentos usados há uma ano para justificar a derrapagem nos trabalhos: a dificuldade de ter informação cadastral “actualizada e com qualidade” sobre as infra-estruturas que estão no subsolo.
Oposição ‘enjoada’
As justificações apresentadas não convenceram os vereadores da oposição, que entendem que era possível antecipar e prever “muitas” das situações detectadas.
“Enjoa ouvir dizer que o cadastro não está actualizado e que as infra-estruturas não se encontravam no sítio certo. É por isso que se fazem estudos prévios”, afirmou Álvaro Madureira, PSD, que lamentou o “flagelo” que a situação representa para quem vive na zona das obras e para o orçamento municipal.
Em complemento, Fernando Costa, também do PSD, lembrou que os mesmos problemas já tinham sido registados na intervenção na rua dos Mártires (estrada da Marinha) e no mercado municipal, que também tiveram “avultados” trabalhos a mais. No último caso, as obras complementares acrescentaram 800 mil euros ao custo da empreitada.
Começando por sublinhar que não conhece os processos em causa, nomeadamente a obra do eixo viário da Avenida Nossa Senhora de Fátima, o delegado da Ordem dos Engenheiros em Leiria admite que “não é suposto haver tantos trabalhos a mais numa obra”.
“Acredito que esteja tudo muito bem justificado, mas são, de facto, valores muito avultados”, diz Ricardo Duarte, frisando que, quando se faz um projecto numa zona com infra-estruturas com alguma idade, “não é de estranhar que não exista um cadastro rigoroso e completo”.
Nessas circunstâncias, devem “acautelar- se surpresas através de levantamentos topográficos que identifiquem com rigor a localização das infraestrutura e a profundidade a que se encontram”, defende o técnico, que admite que, por vezes, o tempo “é um inimigo”, sobretudo, quando há prazos curtos para entregar candidaturas a fundos comunitários.
“Encurta- se a fase de projecto e salta-se o processo de revisão, que devia ser obrigatório em todas as obras públicas”, acrescenta o representante da Ordem dos Engenheiros.
A par da desactualização dos cadastros e da ausência de um registo único, que concentre informação de todas as entidades com infra-estruturas no subsolo, alguns técnicos ouvidos pelo JORNAL DE LEIRIA apontam também como causa para os erros de projecto, que depois se reflectem em mais custos e prorrogações de prazos e deficiências ao nível dos cadernos de encargos.
Essas falhas são “aproveitadas” para apresentar, em sede de concurso, “preços mais competitivos”, para depois, já em obra, serem pedidos trabalhos complementares, explica um técnico.
Segundo um outro engenheiro ligado ao sector das obras públicas, “há empreiteiros que se gabam de ganhar bom dinheiro com os erros dos cadernos de encargos e dos projectistas”.
“Maus cadernos de encargos, dão, em muitos casos, maus projectos, com as equipas a alegarem que fizeram de acordo com o que estava definido”, acrescenta esta fonte.
“Alguns empreiteiros estão na obra para resolver. Outros, tem um grande interesse nos trabalhos a mais, que lhe podem aumentar os ganhos”, reconhece Ricardo Duarte.
O representante da Ordem dos Engenheiros em Leiria explica que esta situação entronca numa outra, relacionada com a redução dos valores das propostas apresentadas aos concursos, que “têm vindo a baixar, às vezes para percentagens consideráveis”, o que “não ajuda ao normal desenvolvimento da obra”.
Isto porque, para concorrerem com esses valores, as empresas baixam as verbas definidas para imprevistos e, quando surgem problemas, procuram garantir trabalhos complementes, explica.
Falta planeamento
Salvaguardando que “há sempre situações que não se conseguem prever e acautelar”, Ricardo Duarte entende que é preciso “planear melhor” os projectos, recorrer mais à revisão das peças e investir mais na sua elaboração.
“Concordo com o responsável do departamento de urbanismo de uma das maiores câmaras do País que diz que com o actual Código de Contratação Pública os projectos devem demorar mais tempo do que a obra, de forma a que a intervenção seja o mais curta possível”, alega.
O princípio de acautelar surpresas parece ter sido seguido na empreitada para a requalificação da rua Capitão Mouzinho de Albuquerque, na cidade de Leiria, cuja abertura do concurso foi aprovada na terça-feira com um valor base de 1,7 milhões de euros.
Depois de um primeiro procedimento, lançado no ano passado, a Câmara optou por fazer um novo, após ter identificado “a necessidade de revisão de parte da informação”, com a conclusão do estudo geotécnico e a actualização cadastral das várias infraestruturas.
Lamentando o sucedido na empreitada da Avenida Nossa Senhora de Fátima e reconhecendo que as reclamações dos moradores são “legítimas”, o vereador das Obras Municipais acredita que há agora condições para que a obra prossiga sem mais sobressaltos e que fique concluída “até ao final do presente ano”.
Contactada pelo JORNAL DE LEIRIA, a Central Projectos, empresa que fez o projecto do sistema viário das avenidas Nossa Senhora de Fátima e General Humberto Delgado, rejeita responsabilidades no processo.
João Santos, sócio-gerente do gabinete, alega que o trabalho foi realizado “com base no projecto de arquitectura desenvolvido pelo Município, nos cadastros de infra- estruturas fornecidos pelas respectivas entidades e ainda no levantamento topográfico fornecido e os requisitos do Município” e que teve acompanhamento de “todas as entidades” envolvidas e que estas “deram parecer positivo ao projecto de concurso”.
“Grande parte dos erros e omissões resultam da alteração ao projecto para corrigir erros resultantes de cadastro e topografia e requisitos diferentes das várias entidades enquanto já se estava em obra, nomeadamente porque caducaram pareceres”, acrescenta o representante da Central Projectos, defendendo que “as alterações solicitadas em fase de obra são responsabilidade da entidade que as promoveu ou solicitou [a Câmara]”.