Estúdios, T0 e T1. São estas as tipologias predominantes nos mais recentes projectos e obras de requalificação no centro histórico de Leiria, com casas vocacionadas, sobretudo, para o mercado de arrendamento de curta ou média duração, dirigido a estudantes e jovens profissionais.
Arquitectos, construtores e promotores imobiliários justificam a aposta neste tipo de habitação pelo facto de requerer um investimento inicial menor, de ser mais fácil de rentabilizar e por responder à procura. Há, no entanto, quem alerte para os impactos de tal opção no médio e longo prazo, já que estas tipologias de reduções mínimas favorecem a rotatividade de moradores e não se adequam à fixação de famílias e de residentes permanentes.
Não se criam raízes, não há espírito e “vigilância de vizinhança” e falha a integração, advertem os especialistas ouvidos pelo JORNAL DE LEIRIA, que defendem uma maior diversidade de tipologias, equilibrando a oferta habitacional, de forma a garantir que o centro histórico não se transforme exclusivamente num espaço para estadias temporárias.
É esse o receio de Joana Ferraz, de 36 anos e uma vida passada no coração da zona antiga de Leiria, com algumas interrupções pelo meio, quando saiu para estudar Literaturas Portuguesa e Inglesa e mais tarde quando viveu na Áustria.
A cada regresso a casa – mais propriamente à Rua Acácio Paiva, a uma habitação arrendada pela avó “há mais de 60 anos, no tempo em que as mulheres ainda não deviam assinar papéis sozinhas” – foi-se apercebendo das transformações do centro histórico. Do “completo abandono”, passando pela dinâmica de requalificação, acompanhada pela tentativa de dar vida à zona, com a abertura de “novos negócios e de projectos como o Festival a Porta”.
Agora, preocupa-a a actual oferta habitacional, centrada em “apartamentos de passagem e para o desenrasque”. “Não estamos a criar habitação para famílias. Estamos a criar coisas, algumas delas, muito precárias. Dá para ver. A pessoa abre a porta e, da rua, conseguimos ver a cama. Portanto, aquela habitação não é um espaço onde a pessoa vá querer ficar muito tempo”, aponta Joana Ferraz, proprietária de um restaurante que fica no rés-do-cão da casa onde vive.
“Sou uma felizarda”, assume, reconhecendo que tal acontece porque “a senhoria tem feito parte da equação”. É, aliás, na esplanada do restaurante que a conversa acontece, interrompida para cumprimentar “o senhor Francisco”, um vizinho “de sempre” e dos poucos resistentes. A maioria dos moradores é composta por pessoas que “vão entrando e saindo”, sem que haja tempo para que se estabeleçam ligações.
“Não há integração com a vida da cidade, entre quem vive e quem chega de fora. E isso tem um preço”, adverte o João Serejo, arquitecto com actividade em stand by por estar envolvido num projecto de investigação, que vive e tem atelier na zona antiga de Leiria.
Já em 2022, na análise que fez à alteração ao regulamento do centro histórico, no âmbito da consulta pública do documento, o técnico alertava para os riscos da opção por tipologias de pequena dimensão, em alguns casos “autênticos guetos de três andares e quatro paredes, formados por edifícios com unidades habitacionais que não podem ser regulamentares”.
“A colmeia torna-se em pequeno gueto, ao ser nestes chamados estúdios que cidadãos chegados de outros países, muitas vezes partilhando a nacionalidade, encontram dormida a um valor que podem suportar”, acabando por “perpetuar nos seus micro-universos os seus próprios costumes, o que os afasta inevitavelmente da desejada adaptação mútua”, assinalava, então, o arquitecto.
Rotatividade de moradores
Além dos problemas de integração, João Serejo aponta a “rotatividade de pessoas” que está inerente à opção por este tipo de tipologias. “Quando se arrenda a um estudante, por exemplo, sabe-se que será por um, dois ou três anos. As pessoas não se fixam”, reforça João Patrício, arquitecto autor de vários projectos no centro histórico, alguns com tipologias maiores, uma opção que, reconhece, é cada vez menos adoptada pelos promotores, sobretudo, devido ao custo de construção.
“As tipologias mais pequenas são aquelas que se conseguem executar por preços minimamente acessíveis”, alega, referindo que tem um projecto em mãos que prevê apartamentos de maior dimensão, mas que o promotor está com receio de avançar e pondera fazer alterações, redimensionando as tipologias.
Foi, aliás, isso que fez José Manuel Carrilho, administrador da Urbiplanície, empresa responsável pela requalificação do edifício onde, em tempos, funcionou a Direcção de Finanças de Leiria, localizado numa das entradas do Terreiro, junto à ‘rua Direita’. O empresário conta que, quando comprou o imóvel, havia um projecto aprovado que previa cinco apartamentos de grandes dimensões.
“Economicamente não era viável. Não chegava para o investimento.” A opção foi reformular o projecto, de forma “aconferir viabilidade económica ao empreendimento e responder à procura existente”, com a criação de 30 unidades de tipologia T0 e T1. “É o que tem mais procura nos centros históricos, por casais em início de vida, pessoas solteiras e gente deslocada que precisa de casas mais pequenas”, sustenta o empresário.
Promotor imobiliário, Nuno Serrano confirma que “o mercado está a absorver bem este tipo de apartamentos”, menos dependente da disponibilização de estacionamento. “Habitação para famílias implica garagem e no centro histórico isso é muito difícil. Implica escavações arqueológicas, o que encarece a obra, que pode ficar parada um ou dois anos. Os investidores preferem não arriscar e optar por outra soluções”, expõe.
Perda de diversidade cultural e social
Reconhecendo que os promotores têm legitimidade, até do ponto de vista jurídico, para fazerem esse tipo de opções, João Serejo defende, no entanto, que “as cidades não podem estar apenas nas mãos dos interesses dos construtores” e que as câmaras deviam ter competências para regular as tipologias, porque, diz, são elas que “modelam a vida de uma zona”.
“A cidade é aquilo que queremos que ela seja. Uma coisa é o mercado, que vai atrás de tendências. Outra é ter entidades públicas a definir a estratégia e o que queremos que a cidade seja, não no imediato, mas daqui a 15 ou 20 anos”, afirma Herculano Cachinho, geógrafo e professor do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa.
Para este investigador, a opção por tipologias T0 e T1 é “uma faca de dois gumes”. Se essa habitação se destinar a alojamento permanente, “beneficia pessoas no início da sua vida activa, o que pode contribuir para que haja algum rejuvenescimento da população residente”, já que “há casais jovens sem filhos que valorizam espaço com ‘caldo cultural’ que se sentem em muitos centros históricos”.
O problema é que “muitas vezes essa tipologia destina-se ao turismo e ao arredamento de curta duração, a pessoas que estão de passagem e que estão sempre a mudar”. Tal não permite que o centro histórico tenha “identidade própria como espaço de residência habitual” e “perde-se a vigilância de vizinhança”, contribuindo para “o sentimento de insegurança de quem ainda aí vive, especialmente, entre os idosos”, assinala Herculano Cachinho, que adverte para um outro risco, o da “perda da diversidade cultural e social dentro da cidade”.
“Para termos cidades e centros históricos saudáveis e equilibrados precisamos de um ‘mix’ de várias tipologias de habitação, para vários tipos de famílias e de utilizadores”, remata.
Ricardo Santos, vereador das Obras: “É essencial equilibrar a oferta habitacional”
Como é que a câmara vê a aposta em tipologias T0 e T1 no centro histórico?
O município reconhece a importância da reabilitação urbana e a dinâmica que a habitação T0 e T1 pode trazer ao centro histórico, nomeadamente, através da revitalização do comércio local e do aumento da presença de residentes. No entanto, estamos também conscientes de que a predominância destas tipologias pode comprometer a diversidade social e a fixação de famílias, fundamentais para a sustentabilidade a longo prazo do centro urbano. Consideramos essencial equilibrar a oferta habitacional, garantindo que o centro histórico não se transforme exclusivamente num espaço para estadias temporárias.
Por que é que os promotores se estão a focar nestas tipologias?
Estas tipologias requerem menor investimento inicial e são mais fáceis de rentabilizar, especialmente no mercado de arrendamento de curta ou média duração, dirigido a estudantes e a jovens profissionais. Em áreas históricas, onde os edifícios são mais antigos e os espaços mais reduzidos, é também mais fácil adaptar imóveis existentes a estas tipologias do que criar apartamentos maiores. A procura por este tipo de habitação tem vindo a aumentar, reflectindo as mudanças demográficas e os novos estilos de vida urbanos.
O que é que a Câmara pode fazer para que haja uma maior diversidade de habitação?
Há um conjunto de acções que podem ser adoptadas para garantir que o centro histórico seja um espaço vivo, inclusivo e com uma comunidade residente diversificada, como estabelecer critérios urbanísticos ou regulamentos municipais que promovam a diversidade tipológica nos licenciamentos. Os municípios podem também colaborar com cooperativas e entidades do sector social para desenvolver habitação acessível a famílias e lançar concursos públicos ou parcerias para promover projectos habitacionais mistos.