Na parede da sala, atrás de Alda Sousa, há um quadro que perpetua a fotografia de um menino a pôr um cravo na G3 de um militar naquele dia 25 de Abril de 1974, que, mudaria, para sempre, o rumo de País e das suas gentes. “Foi a coisa mais maravilhosa da minha vida, a par do nascimento da minha neta”, confessa a antiga vidreira da Marinha Grande, que sofreu na pele as “maldades” – “para não dizer coisa pior” – da ditadura.
Nunca foi presa, mas viu familiares e amigos caírem às mãos da PIDE. Ela própria estava referenciada e vigiada pela polícia do Estado Novo. “Tive sempre muito medo”, assume Alda, contando que, quando alguém ia à fábrica à sua procura, “nunca aparecia à primeira”.
Escondia-se até se certificar que “não eram eles”, os polícias do regime. Nessas ocasiões, tremiam-lhes as pernas. O mesmo sobressalto vivia quando acolhia em casa personalidades como Vasco da Gama Fernandes, José Vareda, José Guarda Ribeiro ou Sérgio Ribeiro, alguns dos rostos da oposição à ditadura na região.
“Estiveram aqui nesta sala, para conversas clandestinas”, conta o marido de Alda, Júlio Silva, de 91 anos, salientando que a esposa cuidava também das pessoas fugidas à PIDE que escondia na casa dos pais, nas traseiras do quintal.
“Não sabia quem eram, nem quem os trazia ou levava. Aqui dormiam e aqui comiam, até os conseguirem pôr a salvo”, relata Alda Sousa, recordando o dia em que albergaram o presidente do Sindicado dos Ferroviários, então procurado pela PIDE.
Nessa noite, à hora das notícias, a fotografia do sindicalista apareceu na televisão, com a mensagem de que era um homem “perigoso”. Nada que o impedisse de, no dia seguinte, ir passear pelas ruas da Ordem. Foi o marido de Alda que acorreu à situação.
“Trouxe-o para casa. Liguei a quem devia e, de madrugada, tiram-no daqui”, conta Júlio Silva, que teve sempre na esposa uma aliada nas suas actividades anti-regime. Apesar do “medo terrível, sempre o apoiei”, assegura Alda Sousa, cujo olhar se cruza com o do marido, numa partilha de orgulho mútuo.
A par do apoio que dava à actividade clandestina de Júlio Silva, a mulher, que trabalhava como empalhadeira na Santos Barosa, vidreira onde esteve 40 anos, era uma voz agitadora dentro da empresa, reclamando melhores condições de trabalho.
Essa intervenção teve o ponto alto na greve dos vidreiros de Março de 1974, que paralisou as empresas da Marinha Grande. “Pedíamos mais 100 escudos para cada operário, incluindo para os garotos, meninos que trabalhavam nas fábricas”, recorda.
A essa proposta, os patrões reagiram com “risos e gozo” – “ainda perguntaram se não nos tínhamos enganado, com um zero a mais” -, mas no final quem riu melhor foram os funcionários, que conseguiram um aumento de 60 escudos.
“Foi uma grande vitória que, felizmente, acabou abafada pelo 25 de Abril”, ressalva Alda Sousa, que considera este um acto de grande “valentia”, no qual as mulheres tiveram enorme preponderância.
“Elas foram extraordinárias”, avança Júlio Silva, contando que havia comissões de trabalhadoras que iam de fábrica em fábrica, de secção em secção, a apelar à greve, forçando as entidades patronais a negociar. Isto, apesar de terem a PIDE “à perna”, acampada junto às fábricas e em vários pontos da cidade.
Desse protesto, Alda Sousa saiu com o seu nome inscrito “na lista da polícia”. Quarenta e nove anos depois, continua convicta que, se não fosse o 25 de Abril, teria sido presa. “Acredito que a revolução me salvou da prisão, a mim e a muitos outros”, diz, ainda com a imagem bem presente das visitas ao primo Joaquim Duarte, que esteve encarcerado em Caxias, no Aljube e em Peniche.
“O que eles faziam aos presos políticos era bárbaro. Custa a acreditar que tenha sido feito por humanos”, desabafa. Foi, aliás, na coragem desses resistentes torturados, alguns até à morte, que Alda encontrou forças para superar o medo constante em que vivia.
O medo de que o marido fosse preso, de que a PIDE descobrisse os homens que escondia em casa ou de “não saber em quem confiar”. “Não sabíamos o que o 25 de Abril ia dar, mas acreditávamos que íamos conseguir viver sem medo.”
Medo é também uma palavra que Júlia Sousa Santos repete, vezes sem conta, no desfiar de memórias sobre a sua vida antes do 25 de Abril. Medo por si, mas, sobretudo, pelos seus. Era pouco mais do que uma criança quando começou a trabalhar na Ricardo Gallo, vidreira onde foi empalhadeira, sofrendo na pele a dureza da profissão, uma dureza que, desde cedo, despertou nela um espírito reivindicativo.
“Não falhava a uma greve”, afirma, com indisfarçável orgulho. Acabou, no entanto, por ser no papel de esposa e de irmã que mais sentiu a aspereza da ditadura, ao ver os seus entes queridos aprisionados pelas garras do regime.
A três meses do casamento, o noivo – Francisco Rodrigues de Sousa, conhecido como ‘Xico Ameixa’, falecido há oito anos – foi preso. “Bateram à porta dos pais e meteram o cano da espingarda num buraco que havia na janela. Acabaram por arrombar a porta e entrar, mas ele já tinha queimado os papéis que tinha em casa e que não devia. Levaram-no na mesma.”
O casamento acabou por acontecer na prisão, numa sala da fortaleza de Peniche, “à porta fechada”, sem convidados, apenas os padrinhos da noiva e um guarda, que serviu de padrinho ao marido. À tarde, estiveram uma hora a falar “à rede”, ou seja, ele de um lado, ela do outro, com uma grade a separá-los. Seria assim que se contactariam nos quatro anos seguintes, até à libertação de Francisco.
“Foi muito duro”, assume. Além da distância e da ausência, Júlia atormentava-se pelo sofrimento infligido ao marido. “Um dia, bateram-lhe de tal forma que tiveram de lhe pôr um adesivo para não sair tanto sangue da boca. Quando o médico chegou, ordenou logo que lhe tirassem a fita, se não queriam que ele morresse afogado no sangue”, conta.
Júlia viu também a irmã ser presa com o filho de 15 meses. Hermínia Sousa Santos, hoje com 88 anos e já com algumas debilidades de saúde, esteve cinco meses em Caxias, partilhando a cela com o bebé.
“Prenderam-na por causa do namorado. Como não o apanharam, levaram-na, a ela e ao menino. Nunca chegou a conhecer a acusação”, diz a antiga empalhadeira, que teve a felicidade de viver o 25 de Abril já com o marido em casa. Tinha sido libertado dias antes, mas, soube depois, o seu nome constava numa nova lista de detenções previstas. “Que alegria tamanha foi a revolução. O meu rico 25 de Abril, que tão estragado está.”
Foi por influência do então companheiro que Rosinda Carvalho entrou para o PCP, com “vinte e poucos anos”. Após as eleições presidenciais de 1958, com Humberto Delgado a liderar a candidatura da oposição, passou à clandestinidade.
Foi uma das muitas mulheres que asseguraram o funcionamento das casas que o partido tinha espalhadas pelo País e que davam guarida aos funcionários perseguidos pela PIDE, servindo também como espaços de trabalho. Rosinda chegou, aliás, a partilhar uma dessas casas com a mulher de Carlos Brito, histórico do PCP, cuja identidade só descobriu anos mais tarde.
“Não sabíamos o nome uns dos outros. Quanto menos soubéssemos, melhor. Usávamos identidades falsas. Eu tinha tranças compridas, mas cortei o cabelo”, recorda a antiga trabalhadora vidreira, cuja filha “nasceu na clandestinidade”.
A menina não tinha ainda quatro anos quando a mãe foi presa, durante a estadia numa casa clandestina, localizada na zona de Moscavide. “Apanharam o responsável da casa, que acabou por nos denunciar. Talvez a tortura tenha sido demais e ele não tenha aguentado”, tenta adivinhar, porque nunca confrontou a pessoa em causa com a situação.
Avisada do risco que corria, Rosinda ainda se pôs à procura de um novo abrigo, mas não se apercebeu que estava a ser perseguida e acabou detida, juntamente com a filha, que permaneceu, durante dois meses, na cela com a mãe, em Caxias. A menina seria depois acolhida pela família materna nos restantes quatro meses em que Rosinda ficou no cárcere, onde, assegura, não foi maltratada.
Menos sorte teve o companheiro, que esteve perto de nove anos em Peniche. Foi torturado, mas “manteve-se firme”, garante a mulher, que, quando saiu de Caxias, sem ser formalmente acusada, regressou à Marinha Grande.
“Puseram-me num comboio. Quando cheguei, estava um ‘taxista’ à minha espera. Descobri depois que era um deles [da PIDE]. Queriam ver se eu me descaia com alguma coisa”.
Rosinda Carvalho, hoje com 90 anos, voltou a Pero Neto, onde ainda reside, e retomou também a luta. Diz que sabia os riscos que corria, mas, assegura, “nunca” houve lugar para arrependimentos.
“Era preciso lutar”, alega. E a luta produziu efeitos com a consumação do 25 de Abril, um dia “há muito desejado”. Soube da revolução por um funcionário do partido, que foi a casa dar-lhe a notícia. “Que alegria… Depois de tanto sofrimento, a liberdade tinha, finalmente, chegado.”
Alda, Júlia, Rosinda e Aida são apenas quatro das muitas mulheres que não se deixaram vergar pelo medo e que lutaram contra o regime de Salazar.
“Tantas delas com filhos pequenos para criar. Tiveram de trabalhar por dois, passaram miséria extrema, humilhações sem nome, viveram a angústia mais profunda. Foram verdadeiras sobreviventes. Mulheres corajosas, mães sacrificadas, filhas dedicadas e heroínas esquecidas”, pode ler-se no livro Mulheres da Marinha Grande – Histórias de Luta e de Coragem, da autoria de Júlia Guarda Ribeiro, publicado em 2007.
Mulheres de Souto da Carpalhosa presas no Forte Peniche
Naturais de Souto da Carpalhosa, povoação do concelho de Leiria, Maria de Jesus Tomásia e Teresa Marques são as duas únicas mulheres confirmadas como tendo estado presas no Forte de Peniche. Os seus são, aliás, os únicos nomes femininos que constam no memorial inaugurado em 2019, junto àquela fortaleza.
Há, no entanto, uma terceira mulher – Maria do Outeirinho – que pode também ter passado por essa prisão e que, tal como as outras duas, participou na designada ‘revolta do milho’, levada a efeito no Verão de 1942 naquela freguesia. A informação foi avançada por uma neta, em 2019, ao jornal Região de Leiria, dando conta que a mulher, também natural de Souto da Carpalhosa, solteira e com um filho de 13 anos, terá, inicialmente, conseguido fugir às prisões ocorridas durante a revolta e andado fugida durante seis meses. Já doente, terá regressado à terra e sido apanhada pela PIDE e presa durante alguns meses.
Maria de Jesus Tomásia e Teresa Marques estiveram no cárcere de Peniche quase um ano. Foram presas na sequência da ‘Revolta do milho’, um movimento popular que “se estendeu a toda a população de Souto da Carpalhosa e arredores”, segundo escreveu o jornal Expresso num artigo publicado em 2019.
A revolta aconteceu num momento em que a fome grassava na região como reacção à decisão do Estado Novo de “requisitar” o milho e outros cereais das zonas onde eram produzidos para serem distribuídos nas grandes cidades de Lisboa e do Porto. Quando os militares da guarda chegaram ao Souto da Carpalhosa, “seguiu-se um levantamento da população”, que queria “que o milho ficasse cá, porque estavam todos a morrer de fome”, relatou um morador ao Expresso.
A polícia dispersou a revolta e “quatro das mulheres que se manifestavam foram apanhadas”. Segundo o semanário, duas conseguiram fugir. As outras duas – Teresa e Maria de Jesus – “foram parar ao comando da PSP de Leiria e posteriormente acusadas de um crime, nunca especificado, e julgadas pelo Tribunal Militar “especial”. Um ano depois esse mesmo tribunal ordenava a sua soltura do Forte de Peniche. “Não há, porém, condenação provada”, ressalva o jornal Expresso.
“Fugi muitas vezes à frente da polícia”