A Escola Superior de Educação de Leiria recebe, nos dias 20 e 21, a Conferência de Mediação Intercultural e Intervenção Social, este ano realizada conjuntamente com a Sociedade Ibero-americana de Pedagogia Social (SIPS). Quais serão os temas abordados?
É a 10.ª conferência e realiza-se sob o lema Pedagogia Social e Mediação Intercultural: Teoria e Prática na Intervenção Socioeducativa. No ano passado, o tema foi a Covid-19, para lá da doença, as transformações familiares, individuais e comunitárias que causou. Dessa conferência, resultou o livro Vivência(s), Convivência(s), e Sobrevivência(s) em tempos de Covid-19, com as conclusões e as comunicações, e cujo primeiro tema é a saúde mental, mas também se abordam outros assuntos, como o futuro do SNS. Este ano, a imagem da 10.ª conferência está ligada a um dos nossos mestrados, que é único no País e é dos mais procurados no Instituto Politécnico de Leiria, o de Mediação Intercultural e Intervenção Social. Ele marca a mudança do modo de pensar a intervenção, que deve ser dialogante, quer seja no trabalho com a criança, com o idoso, com grupos e comunidades. Nunca pode ser a ideia objectivista de trabalhar o outro, como se o outro não tivesse cabeça para pensar, como se outro não fosse um sujeito com o seu próprio projecto. O interventor social, seja ele investigador, sociólogo, antropólogo, jornalista, empresário, patrão, seja que profissional for, tem de usar o primeiro pilar da mediação e da pedagogia social que é a escuta activa. Se não escutarmos o que o outro tem para dizer, não podemos fazer perguntas à sua racionalidade. Também esta conferência tem essa preocupação de tentar intervir na sociedade. Neste mundo global, onde prolifera o individualismo, é fundamental que municípios, empresas, escolas, IPSS… compreendam que há dimensões únicas, íntimas e individuais, porém habitamos um mundo com espaços públicos comuns e isso implica políticas públicas comuns. Mas, nesta 3.ª década do século XXI, elas têm de ser desenhadas conjuntamente e isso significa mediação comunitária; pensar o território, os seus problemas, as suas potencialidades com os agentes fundamentais das organizações básicas, onde o município e o ensino superior são elos poderosos da rede, para ouvir primeiro e, depois, trabalhar com os outros. O melhor exemplo disto, são os orçamentos participativos.
Como aparece a SIPS neste processo?
A SIPS contactou-nos. É um evento único no nosso País, que, antes, só aconteceu uma vez, no Porto, mas decorre, todos os anos, em Espanha, no Brasil e nas Américas. Fomos abordados em Palma de Maiorca, em 2019, pela Direcção da SIPS, que nos desafiou a organizar a conferência em Leiria, com eles. O tema resulta desta conjugação dos interesses da pedagogia social, que é a ciência-matriz da educação social com os temas da mediação intercultural, que exploramos na nossa conferência. Entendemos que é importante pensar na articulação entre a pedagogia social e a mediação intercultural, que é tão necessária ao mundo de hoje, se queremos viver juntos. Já, no final do século XX, o Relatório Delors dizia que um dos quatro pilares do desenvolvimento é “aprender a viver juntos”. Passaram mais de 20 anos e ninguém sabe o que é o relatório Delors. Só se fala em crescimento, crescimento, mas o que o relatório aponta é o “desenvolvimento” e explica que crescimento, só por si, não basta. Se aplicarmos o dinheiro apenas em armas, não há desenvolvimento. Se, para dar à luz, se tem de ir a 100 quilómetros de distância, porque o hospital desapareceu, não há desenvolvimento. O crescimento económico tem de ser transformado em desenvolvimento! Aprender a viver juntos, passa pela mediação de conflitos, disciplina que nasceu nos EUA, em Harvard, para resolver problemas nas organizações. Depois, passou a ser apanágio de muitas áreas, contudo, a mediação intercultural traz uma nova dimensão, porque “a tensão, o debate, um murro na mesa não são necessariamente conflito”. Se somos diferentes, temos de entrar no debate, que é um combate de ideias e a vida é tensão. Não é só amor. A vida é amor e ódio. Sem tensão, a vida não teria sal. N’O Principezinho, Saint-Exupéry dizia: “se és diferente de mim, ainda bem. Enriqueces-me!” Isto é a Humanidade. Não podemos fugir da Humanidade. Não se pode intervir socialmente, sem primeiro conhecer. E esse conhecer, não é exterior, com binóculos ou pelos papéis das estatísticas. É pela escuta activa! Na mediação cultural, quem está em choque, não são apenas dois indivíduos específicos; podem ser minorias, um patrão ou empregado. O que está em choque, não são os indivíduos, mas os valores e os posicionamentos culturais e sociais. A parte visível é que há uma pessoa a ralhar com outra, mas a mediação intercultural percebe o que está subjacente. Não se trata apenas resolver, mas contribuir para a construção de uma cultura de paz. A grande autora deste conceito, Maria Torremorell, vem fazer a conferência de abertura, no dia 20, às 12 horas. Porquê este horário? Porque é um horário mediador. Não podemos impor que as pessoas no Brasil ou no Uruguai se levantem às 4 horas para assistir online ao congresso em Leiria. O programa resulta da busca de um denominador comum. Haverá depois mesas redondas onde se fará o diálogo da pedagogia clássica com a social, que tem esta preocupação de intervenção social, de modo mediador com as populações fragilizadas, sejam elas minorias, crianças, jovens, alunos ou idosos. Fá-lo de uma forma que está para lá do paliativo. Ou seja, não se intervém apenas quando o rio Lis transborda. A intervenção social tem de ser socio-educativa e transformadora, não pode ser no final do processo. Quando o rio chega poluído à foz, podemos despoluí-lo, mas se a intervenção não começa a montante, o assunto continuará na mesma. No encerramento, teremos um professor da Universidade de Coimbra, que trabalha a educação de adultos através da mediação intercultural. Esta Conferência de Mediação Intercultural e Intervenção Social é recordista na Escola de Superior de Educação e Ciências Sociais de Leiria pois conta com 160 comunicações livres e temos 350 conferencistas inscritos, de Portugal, Espanha e América Latina.
Pegando no tema da convivência com o outro, Portugal que é um país de emigração, passou a país de acolhimento. Estamos a saber acolher o outro?
O conflito com o outro não é necessariamente um problema. Banalizou-se a palavra e qualquer discussão é vista como conflito e isso não é verdade. Qualquer discórdia implica uma certa tensão que é perfeitamente humana, porque cada cidadão tem direito a afirmar a sua posição. Temos de substituir a palavra tolerância, que é muito portuguesa e faz parte do racismo “português suave”, por “respeito”. Portugal é muito racista. Tem um racismo soft disfarçado e, muitas vezes, disfarçado pelo discurso religioso, que nos diz para sermos “tolerantes”. A ideia da educação para a tolerância é um erro profundo. A educação tem de ser para o respeito! O respeito não significa aceitar tudo, mas que temos de perceber que o outro, seja ele cigano, imigrante, de outro género ou transgénero ou de outro partido político, é um cidadão e tem direito a ser ouvido, não por “caridade”, mas por cidadania.
O termo tolerância é, em si, uma posição de poder?
A tolerância é assimétrica. A tolerância é um racismo disfarçado! O poderoso dá-se ao luxo de dizer que o outro pode falar… desde que não case com a filha dele. Como diz Françoise Héritier, a tolerância só pode ser o primeiro degrau da aprendizagem do respeito, mas, depois, tolerar é uma coisa muito parada, como se as culturas não fossem dinâmicas. Nesse acolhimento, quem chega, como Portugal chegou, a outros países, tem de se adequar, transformar um pouco, mas nós, que recebemos, para sermos hospitaleiros, também temos de nos transformar. Veja-se a política de Angela Merkel que aceitou a imigração, mas sem escolas estrangeiras e toda a gente tinha de falar alemão. É uma política assimilacionista e de ruptura com a cultura de origem. Os portugueses foram para a Alemanha e França ajudar a reconstruir no pós-guerra e foram bem acolhidos, mas a trabalhar no duro e a viver dentro de contentores. Mas as segundas e terceiras gerações não são iguais aos que imigraram e o imigrante não é um papel químico da cultura de origem. É uma pessoa que tem a sua identidade se vai transformando num mix com influência da origem e da chegada e competência para discutir, quer esteja em França ou na Alemanha. É entender o que está por detrás dos carros incendiado por imigrantes em Paris. Provavelmente, não houve acolhimento.
Foram fechados em ghettos, com pouco contacto com a cultura de chegada?
Exactamente. A ghettização, muitas vezes alimentada pela tolerância, cria barreiras. As pessoas têm hoje capacidade reflexiva, de argumentação e de reivindicação muito maiores, pela cidadania global. Em França, as mulheres querem ser francesas com véu ou sem véu e isto não cabe na concepção monolítica da cidadania republicana francesa ou portuguesa, onde parece que, num país, só há uma língua, uma cultura e uma religião. Mas há lugar para tudo no espaço público, mas tem de ser negociado, dialogado e mediado. Portugal é, hoje, mais multicultural, ainda assim, não podemos confundir Lisboa com Amesterdão ou Nova Iorque. Em Madrid, cada bairro tem uma equipa de mediadores multidisciplinar a trabalhar, onde se promove o possível dessa aproximação, mas onde se preserva também esse afastamento. Toda esta mudança é lenta, porque a história social e cultural está imbuída nos indivíduos. O grupo étnico mais antigo em Portugal são os ciganos. Estão cá há cinco séculos ou mais. A sociedade portuguesa tudo fez para os aniquilar. Quem ganhou essa luta? Foram os ciganos. São uma etnia de sucesso na luta contra a polícia, e Governos que criaram leis que só lhes permitiam permanecer 24 horas num local.
Esse tipo de medidas só reforça a manutenção da diferença.
Sim. E mais! A escritora nigeriana Chimamanda Adichie fala do perigo da história única. Ela chegou aos Estados Unidos e foi estudar para a universidade, onde ficavam admirados por ela falar tão bem em inglês, quando essa é a sua língua desde criança. Um pouco como o português, que, nos anos 20 do século passado, chegava ao Brasil e o estereótipo era o “senhor Manelzinho, de bigodinho e garrafão de vinho numa mão e um bacalhau noutra”. Era assim o português, que, ainda por cima, era visto como “atrasado mental” e falava um português diferente. Quando os brasileiros, hoje, cá chegam, também não nos entendem nas primeiras semanas. Quando o “senhor Manelzinho” lá chegou, também não o entendiam e achavam que era estúpido. Ficou o estereótipo do Manel e da Maria. Em França, ainda hoje, quando se quer mudar uma fechadura ou arranjar o pladur, chama-se um português. Mas isto é história única. Os portugueses não são todos esses. Há um identidade pessoal que se constrói. Portugal, um país de emigrantes que tinha tido uma experiência de um império multicultural. As mulheres brancas em Moçambique, antes do 25 de Abril, já iam ao café e fumavam! Em Portugal continental, não iam ao café, não fumavam, não votavam. A experiência era multicultural, mas cada um no seu lugar. Nos anos 80, com a descolonização, chegaram os “retornados” e, afinal, nós, que somos tão santinhos e nada racistas, olhámos para eles como alguém que “nos vinha roubar o emprego”. Mas “eles”, eram objectivamente portugueses. Não eram apenas pessoas que se identificavam com o hino e com a bandeira… esse é um primeiro sinal desse “racismo português suave”. Ou seja, não queremos cá os nossos! E o mesmo acontece com os emigrantes, quando voltam e, depois, com as pessoas da Europa de Leste e com os brasileiros. O emigrante ou o imigrante reconstrói-se e não é o representante da sua cultura de origem.
Como vê o actual capítulo da luta de tornar o Instituto Politécnico de Leiria em universidade?
Ao contrário do que as pessoas possam pensar, as coisas estão com um grande travão. Podem acreditar que estamos num meio termo, por se ter conseguido que uma proposta cidadãos chegasse à Assembleia da República, para mudar todos os institutos politécnicos para universidades politécnicas, mas isso será um fiasco. A discussão baixou à Comissão Educação e Ciência, e, no dia 11, o presidente desse grupo, o professor Quintanilha, auscultou o Conselho de Reitores das Universidades Politécnicas (CRUP). Prevejo a reprovação de todas aquelas propostas, porque não têm sustentabilidade. O subsistema politécnico e subsistema universitário concordam que o melhor para Portugal é a existência de um subsistema binário, sendo um mais teórico e outro mais profissionalizante – se é assim, a Medicina deveria estar nos politécnicos e a Biologia nas universidades! Se defendem duas coisas diferentes, por que querem nomes iguais? Foi o que o CRUP questionou. Pedro Lourtie, o nosso presidente do Conselho Geral, foi lá responder e enrolou…. Mudar de nome e dar doutoramentos, sem dar despesa ao Governo, seria apenas uma mudança cosmética. A minha previsão é que o PS vote contra, o PSD e outros votem a favor e que caia tudo por terra. Não estou alinhado com o CCISP – Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos, que quer ganhar na secretaria e haver uma universidade politécnica em Leiria, outra em Tomar ou Castelo Branco. Isto não é uma utopia, é uma impossibilidade, que levaria a que houvesse mais 30 universidades num País com 218 quilómetros de largura e 561 de comprimento, com menos de dez milhões de habitantes e que, daqui a dez anos, terá metade da população universitária.
E Leiria, como fica?
Apenas Leiria e Oeste, no contexto nacional, é o único território entre Lisboa e Coimbra, que poderia reivindicar uma universidade, como têm todas as grandes regiões do Mundo. Essas regiões são “ancoradas” à volta de uma universidade. Há 40 anos, quando a Universidade de Aveiro apareceu, Leiria poderia ter feito o mesmo. Quem construiu as universidades de Aveiro e do Minho foi o professor Veiga Simão, nas vésperas do 25 de Abril. Aveiro e o Minho transformaram-se imenso… claro que Leiria também se transformou com o instituto politécnico. Veiga Simão idealizava os politécnicos para pequenos cursos como os CTeSP – Curso Técnico Superior Profissional, para dar coesão ao território nacional, para lá dos cursos superiores em Lisboa, Porto e Coimbra. Criou os institutos politécnicos e alguns vieram a transformar-se em universidades, como a UTAD ou UBI. Fala-se em sistema binário, mas, na verdade, hoje, há dois subsistemas, porque temos um grande sistema de ensino superior e um subsistema universitário, ao qual se juntam os institutos universitários, e outro politécnico. A Universidade da Maia, que é privada, é a mais recente universidade portuguesa. Os privados tudo têm conseguido. A Maia começou por ser um politécnico privado, depois, em 2014, transformou-se em instituto universitário, como o ISCTE, em Lisboa, e, hoje, é a Universidade da Maia. Não brinquemos com isto. Tanto o CRUP como o CCISP comungam do sistema binário. Sou contra esse sistema. Vejo, numa fase de transição para Leiria, um esquema semelhante ao da Universidade de Aveiro que tem lá dentro cursos de natureza universitária e outros de natureza politécnica, mas o diploma é sempre emitido pela Universidade de Aveiro. O problema de Portugal, no ensino superior, é antes de mais, financeiro e o financiamento tem recuado. Temos de perceber quantos estudantes teremos no ensino superior dentro de dez anos e se isso não obrigará a uma política antecipatória, de perceber quem é que se terá de juntar com quem e não repetir cursos.
Com o fim de agregar universidades?
Universidades e politécnicos, para ganhar escala internacional. A OCDE já diz que temos doutoramentos a mais. Não faz sentido que haja o mesmo doutoramento em Lisboa, Porto e Leiria. O que faz sentido é que os melhores investigadores da área estejam num consórcio a dar um doutoramento.

Leiria juntar-se-ia a quem?
O IPL é a única instituição que tem um território entre Lisboa e Coimbra e tem o mais extenso campus universitário e o maior do ponto de vista do capital humano. São cinco escolas e os pólos de Torres Vedras, Pombal e o de investigação da Marinha Grande. São oito e isto causa muito medo a Coimbra e a Lisboa! Seria uma universidade multicampi, que poderia, numa lógica de boa gestão de recursos, juntar escolas superiores como a de Rio Maior, que é do Politécnico de Santarém. Seria um argumento forte para um trabalho em rede com os agentes da região. Se avançássemos já com a minha proposta da Universidade de Leiria e Oeste (ULO) – já há 20 anos que a fiz -, os nossos adversários passam a ser Coimbra e Lisboa, isto é mais sustentável, politica nacional e localmente, do que a luta inglória de transformar, por nome, os institutos politécnicos em universidades politécnicas. Se acontecesse, continuaríamos a ter menos financiamento, os professores continuariam a dar mais aulas e a produzir a mesma investigação que os das universidades, para poderem ser avaliados de igual modo. Não é um passo em frente, não é sustentável e Leiria nada ganha com isto.
Como se explica a ausência de união e força na região nesta luta de décadas?
É uma falta de coesão social que acontece primeiro pelo desconhecimento. As pessoas não sabem o que é o ensino superior em Portugal. Por outro lado, é uma questão identitária e antropológica: a região não sabe quem é. Está em construção. O tal “gigante económico” não sabe quem é. Espero que o Instituto politécnico possa voltar a organizar daqui a um ano um grande congresso da região, tal como o que fizemos em 2004 para pensar Leiria. Já fiz esse desafio ao presidente. Não pode ser o Governo Civil ou as Câmaras a pensar nisso. Temos de ser todos, em rede.
Com o fim dos Governos Civis, a instituição mais agregadora da região é o Instituto Politécnico?
É isso. Veja-se as outras questões importantes da região – o aeroporto em Monte Real ou a Linha do Oeste. A alta velocidade, afinal, não terá uma estação, mas um ramal com um desvio para vir à estaçãozinha da Gândara e perder dez ou 15 minutos. E o projecto do aeroporto acontece à parte? Isto não é pensado em rede? Não é só Leiria que tem falta de coesão e de pensar as coisas em rede. Esta linha não tem ligação ao aeroporto? A luta de Santarém pelo aeroporto é muito legítima, mas as pessoas de Lisboa não a compreendem. Pensam que o aeroporto é de Lisboa e que Lisboa acaba na Portela. Para lá, é periferia e nem se sabe se lá vivem pessoas. Leiria não tem coesão social e ela não pode assentar apenas na vontade dos políticos. E há um não-diálogo entre a dimensão científica e académica e a dimensão política. Quando há um encontro de políticos, não aparecem os académicos. Quando se faz um encontro académico, não aparecem os políticos.
Falta maturidade e contemporaneidade aos decisores, empresários e cidadãos?
Muita. E não compreendem que a intervenção tem de ser mediadora. Intervenção é uma palavra complicada, pois podemos cair na ditadura. Quem manda é o chefe. A intervenção social, que é uma expressão que as pessoas usam naturalmente, é perigosa se não remeter para uma filosofia de acção e de trabalho em rede, o que significa intervir com os outros e não sobre os outros. Os orçamentos participativos são o melhor exemplo de mediação intercultural, em Portugal. Mas tem de ser ampliado nas decisões políticas, nas construções e nos projectos. Mesmo as reuniões entre partidos devem pensar isto, em vez daquela coisa mesquinha de se tentar marcar a diferença quando aparece um projecto, em vez de se procurarem os denominadores comuns. O denominador comum é “o que nos interessa mais para Leiria e Oeste?” O meu desafio é realizar um grande congresso, dentro de dois anos, sobre municípios e trabalho em rede, e trazer oradores e projectos de sucesso. Há tanta coisa boa sobre o sucesso de trabalhar com as populações, que deve ser ampliado para pensarmos as prioridades para a região. Se Leiria se quer afirmar, tem de ter a sua universidade. A região seria muito mais respeitada. A relação com a comunidade não pode ser apenas com os decisores políticos. E as IPSS e as escolas? As autarquias poderiam sentar-se com as associações e ter um técnico que perceba de mediação a ouvi-las. Não se pode ter um campo de ténis e uma piscina em todas as terras… há coisas que podem ser comuns. As ETAR podem ser comuns… temos de ver estes exemplos e ver o seu potencial e alargá-los a toda a intervenção social sobre o território, de modo mediador. Fazendo surgir as ideias. Mesmo usando palavras diferentes, temos ideias comuns. Quem pode fazer isso é uma instituição de ensino superior, no nosso caso o Instituto Politécnico de Leiria.
Mas a sociedade portuguesa, em vez de agir, ainda procura soluções que envolva alguém forte que imponha ordem; um sebastianismo.
O Estado Novo não acabou em 1974. Há uma cultura de desculpabilização de uma cidadania que não existia, de uma cultura monolítica de obediência, que se transmite de pais para filhos. Coloca-se a tónica e a obrigatoriedade de acção no Governo. “Eles não resolvem, eles não fazem nada!”. Não! É o espaço comum, temos de pensar o espaço público. A noção de condomínio, que não consegue tratar de uma telha que deixa entrar água, é o exemplo mais paradigmático do que é vivermos juntos quando somos diferentes, e de assumir aquilo que é meu e o que é nosso. Temos uma cultura de desresponsabilização, de uma cidadania que não é cidadania, porque a educação cívica do Estado Novo não é para a emancipação, não é para a capacitação, não é para a autonomização é para a domesticação e para moldar. Ainda se usa muito essa expressão “moldar”. Podemos influenciar, mas não podemos pegar no barro e fazer do outro a imagem que nós queremos. Não quero impor ideias, gostaria de conversar com outras pessoas sobre as minhas ideias, numa conferência e emergirem outras dimensões com o contributo de todos, pelo diálogo necessário. Em 2004, com o congresso, já o iniciámos, mas é preciso continuar a pensar nisso com urgência. Os municípios devem ter uma pedagogia social e envolver a população para que os projectos sejam dela também. Veja-se a União de Leiria; perguntaram-me uma vez se havia um divórcio entre o clube e a cidade. Não. Não há divórcio, porque nem sequer houve ainda casamento! Mas há a oportunidade de transformar as críticas, o estádio e os casos num símbolo identitário. Não há problema algum em ser-se do Benfica e da UDL ao mesmo tempo. Quanto à universidade, não haverá mais 30 universidades, mas haverá mais uma. O Instituto Politécnico de Leiria vai ser universidade e será líder e trabalhará com os outros. Vamos pensar e construir em conjunto. Será muito difícil, mas temos de acreditar que é possível, porém, não é a bater na mesma tecla. Os acordos não podem ser só para pensar a indústria mas igualmente para a dimensão social, sem a qual, nada resulta.
PERFIL
Autor da melhor investigação nacional em Educação
Ricardo Vieira é natural de Albergaria dos Doze, concelho de Pombal.
É licenciado em Antropologia e mestre em Antropologia Social e Sociologia da Cultura e doutor em Antropologia Social, pós-doutor em Serviço Social e agregado em Antropologia da Educação pelo ISCTE-IUL.
Em 2000, foi recebeu o Prémio Rui Grácio, distinção nacional para o melhor trabalho de investigação em Educação realizado em Portugal, SPCE (Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação).
É, actualmente, professor coordenador principal (professor catedrático) da Escola Superior de Educação e Ciências Sociais do Instituto Politécnico de Leiria, professor decano do Instituto Politécnico de Leiria e investigador integrado do CICS.NOVA.IPLeiria.
É igualmente autor de inúmeras publicações científicas e livros, em nome próprio e colectivamente.