Em Janeiro de 2021 tornou-se director de Regulação e Pré-qualificação na Organização Mundial da Saúde. Quais são as suas funções?
A OMS é uma agência especializada do sistema das Nações Unidas, mas ao contrário das outras que estão sob a alçada dos secretário-geral e secretários-gerais em Nova Iorque, ela é “governada” pelos 194 Estados-membros. O director-geral é eleito por eles e não designado pelo secretário-geral das Nações Unidas. A OMS tem assim um corpo de gestão, incluindo uma vice directora-geral e directores-gerais assistentes, nomeados pelo director-geral. Há estruturas de suporte administrativo, de governança, da cooperação multilateral, do suporte informático, de administração financeira, entre outras, e um conjunto de divisões centradas em áreas programáticas ligadas ou a doenças ou a grandes questões do sistema de saúde. À parte, há ainda uma divisão grande com competências na preparação e resposta em emergências em saúde. A divisão onde o meu departamento se inclui, está na segunda parte, naquela que tem as áreas programáticas e uma delas é a de Acesso a Medicamentos e a Outros Produtos de Saúde, dirigida pela “assistant director-general” Mariângela Simão, uma pediatra brasileira com uma larga experiência a nível estadual e federal no Brasil, que esteve como directora de um dos departamentos da ONU SIDA. Nesta divisão, há dois departamentos, o de Health Policies and Standards, ligado a políticas de acesso à saúde, com estabelecimento de listas de medicamentos e de produtos essenciais, mas também a normalização de padrões, quer sobre a avaliação de medicamentos, quer sobre a avaliação de tecnologias da saúde.
E o outro?
O outro departamento é o de Regulação e Pré-qualificação, o que eu dirijo, e que representa cerca de 60 a 70% de volume de trabalho e de equipa. A divisão tem cerca de 220 pessoas e o meu departamento tem cerca de 150. Temos uma unidade de pré-qualificação, uma de regulação e de segurança e uma de assistência à produção local de medicamentos e de produtos de saúde. As unidades têm depois, abaixo, equipas com tarefas específicas. Por exemplo, na Pré-qualificação, faz-se a pré-qualificação de medicamentos, de vacinas, de dispositivos médicos e de inspecções…. Os chamados vector control products, que vão das redes de protecção de mosquitos, até mosquitos transgénicos, ou seja, desde tecnologias clássicas às de ponta com modificação genética. O Regulation and Safety age à volta de funções regulamentares nos Estados-membros, estabelecimentos de redes complementares, do sistema mundial de farmaco-vigilância. A unidade que pilota o sistema mundial de farmaco-vigilância com o Vigibase, base mundial de farmaco-vigilância, está localizada no Uppsala Monitoring Centre (UMC), na Suécia. O UMC é o que chamamos um WHO Colaborative Centre, ligado directamente ao meu departamento. Significa que eu, pelo facto de ser director de departamento, numa parceria entre o Governo da Suécia e a OMS, sou, automaticamente, vice-chair do Conselho do UMC. É uma parte fundamental do nosso trabalho de colaboração, à escala mundial, na farmaco-vigilância. Depois, temos outras áreas de alertas de defeitos de qualidade em produtos de saúde, de combate aos medicamentos falsificados ou produzidos em condições sub-standard. Há uma colaboração muito grande com várias agências globais nessa área. Temos ainda uma área de certificação de laboratórios e o apoio à produção local. Na totalidade, temos, no departamento, três unidades que representam 12 equipas ou áreas especializadas que realizam esse trabalho. Pegando no exemplo mais simples, o das vacinas. A função que realizamos é semelhante àquilo que a Agência Europeia do Medicamente ou o Infarmed realizam para a autorização de introdução no mercado, mas não somos responsáveis por emitir essa autorização, porque não temos um território. Servimos de suporte aos Estados-membros que não têm capacidade técnica para realizar esse trabalho ou suporte ao public procurement no quadro das Nações Unidades. Os programas de vacinação da Unicef e outro tipo de programas que dependem do nosso trabalho de avaliação técnica, representavam antes da pandemia cerca de cinco biliões de dólares de mercado mundial, só do sistema das Nações Unidas. O apoio aos países tem que ver com uma realidade dramática. Setenta e cinco por cento dos 194 estados-membros da OMS não tem uma agência regulamentar funcional de acordo com critérios internacionais. Muitos deles, não teriam condições para realizar uma avaliação técnica adequada se não existíssemos para fazer essa intermediação. O caso mais paradigmático são, então, as vacinas para a Covid-19. Até ao dia 20 de Maio, aprovámos 11 vacinas, com 17 ou 18 Emergency Use Listing, porque algumas têm processos de fabrico diferentes e têm de ser tratadas de forma autónoma. Muitas vezes, o processo de fabrico, quando não é conduzido na mesma fábrica, tem um impacto tão grande no produto final, que temos de considerar uma avaliação à parte. Estas 11 vacinas correspondem a 70 locais diferentes de fabrico de substância activa ou produto acabado, que também têm de ser inspeccionados e monitorizados por nós. Depois, através do Facilitating Product Introduction, que faz a ligação às agências nacionais, olhando para caso particular e para as deficiências que existem, assistimos cada uma delas, para terem uma autorização regulamentar. Fornecemos os dossiers e relatórios e todo o trabalho de apoio para decisão dos Ministérios da Saúde e outras estruturas nacionais. Estas 11 vacinas, traduziram-se em 3500 autorizações regulamentares em 150 países. Sem esta intermediação entre o desenvolvimento tecnológico e a assistência técnica aos países mais necessitados, as coisas seriam mais difíceis ou não teriam a qualificação técnica adequada.
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, afirmava, no início do ano que, por esta altura, já estaríamos próximos da endemia, prevendo o fim da pandemia. A previsão pecou por precoce?
É natural que estejamos cansados destes dois anos e queiramos ver o fim do túnel, o mais rápido possível. Seria a pessoa mais contente do mundo se [LER_MAIS]pudesse dizer que nos tínhamos visto livres do SARS-CoV-2, hoje! Infelizmente, isso não acontecerá nunca. A fase para nos vermos livres da Covid-19 terá sido, logo no início, em Wuhan, e perdemos a oportunidade. O que significa termos um vírus endémico? Significa que teremos surtos, sazonais ou não, dependendo desta ou daquela circunstâncias. Noutra situação endémica, embora não sejam doenças comparáveis, temos a tuberculose, o HIV e a gripe. Apesar de termos um sistema com 100 anos de experiência e controlo muito apertado com campanhas de vacinação para a gripe sazonal, há sete ou oito décadas, morre muita gente dessa doença. O facto de passarmos de uma fase aguda da pandemia para uma endémica ou outra, não deve fazer-nos deixar de preocupar com o controlo clínico dos doentes e com a existência de uma rede à escala global que permita monitorizar esta e outras emergências de saúde. Em 2021, quando estávamos numa fase onde ainda não havia muitas vacinas para o SARS-CoV-2, houve dois surtos de ébola em África. Na Organização Mundial de Saúde (OMS) tivemos capacidade de resposta, porque tínhamos tido uma experiência dramática, em 2014 e 2017, onde aprendemos muito. Muita da nossa capacidade de resposta com a Covid-19 foi aprendida com essa crise de ébola. O Emergency Use Listing, por exemplo, estava aprovado e preparado antes da Covid-19. Hoje, com a Covid-19, estamos a aprender lições dos erros cometidos e a ganhar maior eficiência em processos, antecipando que haverá outra.
Outra situação semelhante?
As zoonoses e várias outras doenças são fruto de não termos prestado atenção à forma como entramos de forma disruptiva nos ecossistemas. A nossa principal preocupação na OMS, é termos capacidade de resposta em cada momento. Determinadas afirmações produzidas, no passado, por vários dirigentes políticos, portugueses e de outros países, foram-no no momento onde estávamos a sair da onda da variante Delta e antecipava-se que a Ómicron poderia ser um incidente localizado no tempo e até com consequências positivas na imunidade da população. Mas a realidade, hoje, é mais complexa. Temos múltiplas estirpes categorizadas como Ómicron, com diferentes níveis de protecção pós-infecção, com diferentes níveis de agressividade e aprendemos que as vacinas aprovadas são muito eficazes. Há estudos à escala mundial, realizadas com seis plataformas de vacinas diferentes – RNA, adenovírus, vírus inactivados e modificados -, e, no critério fundamental, de protecção da doença severa e morte, todas elas continuam a ter elevados níveis de eficácia. É verdade que, nos critérios de infecção e de hospitalização, aparentemente, as vacinas vão perdendo a eficácia inicial. A OMS, através do Technical Advisory Group for Vaccine Composition emitiu um alerta em Janeiro aos fabricantes, para que se dedicassem à produção de novas vacinas, idealmente, que impedissem a transmissão. Nenhumas das actuais a impede, embora impeçam a morte e a doença severa e grave. Os dados epidemiológicos é que vão guiando a nossa resposta. Embora não seja a minha área em concreto, tenho de ter conhecimento do que vai acontecendo. Os nossos dias começam sempre com uma reunião relativamente às emergências de saúde e é um encontro onde costumam estar entre 120 a 170 pessoas online, a serem informadas de várias situações, não apenas da Covid-19. A nossa preocupação não é saber se vai ser declarada a endemia ou o fim da pandemia, é monitorizar e responder de forma adequada à evolução da doença.
Qual tem sido a evolução do vírus?Há dias, foi revelado que a actual variante a afectar Portugal é mais contagiosa, mas menos grave. E no resto do mundo?
Em muitas infecções virais e em muitas destas situações, terá havido, no passado, uma tendência para a evolução para estirpes mais infecciosas, mas que causam doença menos severa. Não aconteceu sempre, mas é uma tendência histórica. Há dois anos e meio, não conhecíamos este agente viral. Conhecemos o influenza – vírus da gripe – há 104 anos e estar a tentar extrapolações de casos históricos para situações onde o conhecimento científico ainda está a evoluir é um erro que não gostaria de cometer. Gostaria de recomendar cautela. Dou o caso de um estado-membro que foi muito injustiçado e cuja comunidade científica também foi muito injustiçada: a República da África do Sul. Quando foi identificado o Ómicron, foi lá desenvolvido um trabalho extraordinário na tipagem das diferentes estirpes, mas a reacção de muitos países foi isolar o país. Foi injusto e um erro! Colocou-nos enormes problemas até para retirar amostras para outros países para serem reanalisados e os resultados validados, por laboratórios independentes. A ideia de fechar e confinar toda a gente, com a política de “Covid Zero” não é sustentável a prazo. O próprio director-geral da OMS disse-o, há dias, sobre os confinamentos na República Popular da China. São precisas respostas adaptadas à situação epidemiológica, mas também às circunstâncias de cada uma das sociedades. Fazemos recomendações gerais, que devem ser interpretadas por cada autoridade nacional de saúde, no contexto próprio de cada sociedade. Não nos compete a nós, enquanto agência internacional na área da saúde, governar países. Essa função é dos Governos, que, esperamos, tenham em conta as recomendações que emitimos e as adaptem às suas realidades.
Ainda faltará muito para nos chegarem novas vacinas contra a Covid-19?
Ainda hoje, na imprensa portuguesa, li uma notícia sobre o atraso nas novas vacinas. Vamos ser claros, aquilo que é referido, numa entrevista ao professor Luís Graça, são novas vacinas que prevenirão a infecção. De facto, sobre essas, não há nenhum caso em concreto que se possa dizer ser promissor e que saibamos quando chegará ao mercado. Porém, no contexto geral, quando falamos de “novas vacinas”, referimo-nos à actualização das vacinas actuais. Elas foram desenhadas para prevenir doença severa e morte e, esperamos, tenham um índice de protecção superior noutros critérios, como a doença sintomática ou a hospitalização. Verificamos que tem havido uma evolução não sequencial e até errática de subestirpes e ainda há poucos dados relativamente ao nível de protecção das actuais vacinas para estirpes em concreto. Há dados de estudos observacionais e epidemiológicos que nos mostram que a eficácia das vacinas actuais na população, exposta a diferentes variantes, onde a dominante são as da família Ómicron, continuam a ter uma grande capacidade de protecção. Obviamente, temos de antecipar a possibilidade de isso não ser assim no futuro. Vamos ter uma decisão de peritos da OMS, provavelmente, em Junho e temos prevista outra decisão de um comité de peritos da Food and Drug Administration (EUA), no dia 28 de Junho, e um encontro da Agência Europeia do Medicamento, que resultará numa decisão a 30 de Junho. Antecipo que, até final de Junho ou meados de Julho, haverá uma decisão relativamente àquela que poderá ser a composição para as vacinas actualizadas. Isso significa que iremos dispor de “armas adicionais”, mas a decisão poderá ser para serem utilizadas apenas como reforço e só em determinadas situações. No caso de virem a ser recomendadas novas composições, o que pensamos é que essas vacinas serão uma arma complementar e não substitutiva das actuais vacinas, que continuam a ter um elevado nível de eficácia.
Esta será apenas uma de novas doenças que poderão aparecer devido à acção humana no meio ambiente e às alterações climáticas?
A acção fundamental prende-se com o equilíbrio e sustentabilidade dos ecossistemas. Serão precisas muitas décadas para corrigir o que já foi feito de errado. Há várias iniciativas da OMS, com outras agências da ONU, no conceito One Health, que têm de incorporar o que se passa nos ecossistemas não humanos e as implicações do que passa desses ecossistemas para o ecossistema humano. Essas são respostas a muito longo prazo. Antes de termos a solução para esses problemas, temos de ter capacidade de resposta para os problemas que vão bater à porta. A 75.ª Assembleia Mundial da Saúde, da semana passada, tratou aquilo que os media têm apelidado de “Tratado da Pandemia”, mas que, na prática, é um instrumento de cooperação entre Estados para preparação e resposta a ameaças emergentes na Saúde. Um acordo só terá o texto final aprovado em 2024, e será em tempo recorde, sendo preciso que cada etapa não se atrase para não alongar o processo global. A Assembleia focou-se em três aspectos essenciais, a reforma financeira da OMS, a reforma das regulações internacionais na Saúde e a missão da OMS na preparação e resposta a ameaças emergentes e consequências na estrutura administrativa da OMS e de outros parceiros. A reunião serviu para prepararmos a nossa capacidade de resposta a situações como esta que estamos a viver, havendo a possibilidade de haver outras, igualmente graves, no futuro.
Há o perigo de o tempo fazer esquecer estas lições?
A memória é curta e já estamos a assistir a isso. Para muitos, a Covid-19 já acabou, mas há gente a morrer todos os dias. As complicações de saúde decorrentes de uma infecção com esta doença, a médio e longo prazos, não são sequer previsíveis. Não sabemos as consequências do ponto de vista pneumológico, neurológico…. Esta crise trouxe o pior da falta de cooperação entre países e algum egoísmo no acesso a vacinas, a bens de saúde e de protecção. Porém, a Covid-19 também trouxe o que há de melhor na Humanidade. A intensa colaboração entre os sistemas de investigação, da indústria, dos reguladores e dos Governos, é absolutamente histórica. Em pouco mais de nove meses, após a identificação do vírus, ter a primeira vacina no mercado, garantindo todos os critérios de qualidade, segurança e eficácia, estabelecidos para qualquer medicamento e vacina, é histórico e notável. Representa um esforço de um conjunto muito largo de comunidades, de países e de pessoas que souberam colaborar à escala global, de uma forma nunca vista anteriormente. Esta é a grande lição que temos de aprender desta crise!
O homem que avalia os medicamentos
Desde Janeiro de 2021, que Rogério Gaspar é o director do Departamento de Regulação e Pré-qualificação da Organização Mundial de Saúde, em Genebra. Uma das suas missões é avaliar medicamentos e vacinas contra a Covid-19. Na orgânica da OMS, o departamento de Rogério Gaspar faz a regulação para o acesso a medicamentos no sistema da ONU. Rogério Gaspar é professor catedrático da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa (FFUL) e foi presidente do Conselho de Escola da FFUL. Foi vice-presidente do Infarmed e membro do Conselho de Administração da EMA. Entre 2013 e 2017 exerceu funções na Reitoria da Universidade de Lisboa supervisionando as áreas da Investigação & Desenvolvimento, Empreendedorismo e Transferência de Conhecimento da Universidade de Lisboa. Foi vice-presidente da European Federation for Pharmaceutical Sciences, coordenador da European Science for Health (EurSci4Health) e presidente da Sociedade Portuguesa de Ciências Farmacêuticas.