Na linguagem cinematográfica, um plano sequência é um plano que regista a acção de uma sequência inteira, sem cortes. Até ao aparecimento do vídeo estes planos estavam limitados – pelo menos no formato de 35mm – ao tempo de uma bobine com 1000 pés de película: 11 minutos.
Com o vídeo, no entanto, as experiências radicais tornaram-se possíveis e Aleksandr Sokurov, em A Arca Russa (2001), fez um plano sequência de 96 minutos, filmado numa única vez, em 33 salas do palácio Hermitage de São Petersburgo, com mais de 3000 actores e figurantes.
Em Irreversível (2002), a câmara de Gaspar Noé segue, durante 13 minutos, às profundezas de Sodoma, um Vincent Cassel sedento de vingança. Como não recordar, ainda, o final de Profissão: Repórter (1975), quando percebemos que Jack Nicholson acabou de ser morto?
A câmara de Antonioni sai do quarto do hotel para a rua, passando por entre as grades da janela, num travelling “impossível”, como se o espírito do repórter vogasse agora, sem constrangimentos físicos. E Béla Tarr, em O Cavalo de Turim (2011), dá-nos um longo plano inicial, de uma beleza impressionante.
Na História do Meu Cinemahá um destes planos que me deixa sempre subjugado. Em A Sede do Mal (1958), a câmara de Orson Welles abre em fade out para umas mãos que accionam uma bomba relógio e o plano só termina 3m10s depois, com a explosão.
[LER_MAIS] Pelo meio, Charlton Heston e Janet Leigh deambulam apaixonados pelas ruas de uma cidade mexicana, numa noite quente de verão, totalmente alheios ao que se está a passar.
Cumprimentam alguns conhecidos, cruzam ruas, dão um beijo – sempre seguidos por um câmara que faz travelling, sobe por cima do casario e desce de novo para a estrada, sem nunca perder o foco, numa coreografia arrebatadora. São 3m e 10s de genialidade fílmica e narrativa.
Mas o plano sequência que sempre me desacomoda, não por qualquer razão artística ou técnica, é o de Alan Pakula, em A escolha de Sofia (1983). Meryl Streep, prisioneira em Auschwitz, é chamada à residência do comandante do campo.
A câmara acompanha-a penosamente, ao longo do pátio lamacento, enquanto Meryl se arrasta, totalmente exaurida. À sua frente a visão dos palanques dos enforcamentos e, à sua direita, no Bloco 25, centenas de prisioneiras, seleccionadas para o gaseamento, assomam às janelas, de braços estendidos, nuas, em desespero.
No muro, altíssimo e rodeado de arame electrificado, abre-se uma porta para o exterior, que deixa entrever um jardim. A câmara eleva-se então sobre o muro, abandona a lama e os gritos das prisioneiras ao mesmo tempo que nos dá a ouvir o riso cristalino de crianças e, a ver, um jardim florido onde brincam alegremente os quatro filhos de Rudolf Höss, o comandante do campo de concentração.
O cinema tem destas coisas. Este é um plano perverso e violento que me faz sempre pensar na condição do Humano e me recorda que a “civilização” e barbárie têm sempre convivido paredes meias, que a despiedade faz parte de todos nós e que, com frequência, pactuamos com o sofrimento, mesmo ao nosso lado.
E que o Inferno na Terra pode estar à distância de um metro. Basta somente uma panorâmica, sobre o muro, para o perceber…
*Professor