Esteve em trabalho na guerra da Ucrânia e tem também reportagens sobre a crise dos refugiados no Mediterrâneo, entre outros temas. Natural da Nazaré, Rui Caria vive nos Açores há 18 anos. Nasceu em 1972 e em 1993 tornou-se correspondente da TVI na área da informação, colaboração que manteve, como repórter e editor de imagem, até 2003. Em 2006, passou a repórter correspondente nos Açores para a informação da SIC. Tem trabalhos publicados em plataformas como a National Geographic, a Leica Fotografie International e a Getty Images e foi finalista e vencedor de diversos concursos de fotografia, como o Sony World Photography Awards – National Awards.
Fotografia de Daniel Rodrigues
Numa carta dirigida à Ucrânia, escreve que é um produto do sistema que critica. Em que sentido?
Não somos todos? Precisamos das coisas sobre as quais lançamos um olhar crítico, vivemos com elas. Os jornalistas e os jornais estão a afastar-se da Ucrânia porque é assim que funcionam as agendas mediáticas, vão mudando ao sabor dos acontecimentos.
E mudaram para o Médio Oriente nas últimas semanas.
Os canhões mediáticos viraram-se para o Médio Oriente. Eu, se calhar, também estou a consumir mais notícias de Israel, neste momento, do que da Ucrânia. Quando escrevo isso, é pedir desculpa à Ucrânia se ela me vir a fotografar em Israel. Falo do abandono e a seguir também eu a abandono.
Estar num cenário de guerra, em trabalho, como fotojornalista ou repórter de imagem, provoca sentimentos contraditórios, de culpa ou dúvida?
É possível. Fugir a alguns pensamentos desses, sentimentos de culpa e de ética, e, até, de moral, é uma ferramenta, também, para conseguirmos estar nesses ambientes. E só depois, quando chegamos a casa, é que vamos ver o que andámos a fazer, que pecados é que cometemos, eventualmente, porque não é difícil atropelar conceitos de ética aplicada às profissões e até conceitos morais. É uma coisa que se percebe depois, com mais reflexão. No terreno, temos de ser todos muito mais institivos. Se paramos para pensar, ficamos eternamente lá, cristalizados, com um morteiro ou com uma coisa qualquer que nos cai em cima.
Em algum momento sentiu que a emoção prejudicou o seu trabalho?
Só uma vez. Estávamos para entrar em directo, eu estava de frente para a câmara, um gato atravessou-se à minha frente, a arder, e aquilo afectou- me, fisicamente. Invadiu-me de uma certa forma que tive de me sentar uns segundos e acho que já não entrámos no ar, ou entrámos mais tarde, já não me lembro muito bem.
Na Ucrânia.
Em Kharkiv, num bairro onde não ia ninguém, nem os bombeiros, e nós estávamos junto a uma casa a arder.
A trabalhar para a SIC?
A fazer fotografia e a trabalhar para a SIC também. Em termos de informação, faço o que puder fazer. Escrevo um texto, entro em directo, faço uma fotografia. É preciso é comunicar. Tenho essa visão mais abrangente do jornalismo que sei que para muita gente cria divergências. Vamos ter de começar a fazer tudo e já estamos a fazer tudo. Há um conjunto de conceitos que querem dizer uma só coisa: desenrasca-te e faz o que puderes para informar as pessoas que não estão lá. E é isso que faço já há muitos anos, porque sempre fui correspondente de televisão e de fotografia e de repente descobri que tenho de também fazer o resto, em vez de estar só atrás das câmaras. E até dar a cara, e aparecer, e dizer o que estou a ver. Ouvir as pessoas que acho que interessam para ajudar à minha descrição.
A missão passa por testemunhar e contar?
Só pode ser, não há outra forma. As fontes são limitadas, a água que delas sai é turva, de vez em quando é imprópria para consumo, é água não potável.
O que é que o motivou a ir?
Não sabes porque é que vais atrás de uma história, acho que não há uma fórmula. Não nascemos jornalistas. O jornalismo é uma profissão, não é uma respiração. Há um instinto. O jornalismo passa um bocado por a gente olhar para coisas e achar que aquilo é história e que é divulgável. O jornalismo não é só aquele lugar comum, que tudo o que ninguém quer ver publicado é que é notícia. Não é bem assim. As pessoas esperam que nós publiquemos também coisas que elas querem ver publicadas. E coisas positivas, no sentido de causarem sensações de esperança e de alegria. É o jornalismo que me agrada mais, no fundo. Conseguir contar histórias que possam levar pessoas a fazer coisas em prol de alguém ou de alguma coisa, criar, se calhar, felicidade. É sempre mais fácil pegar em histórias más do que em histórias boas e fazê-las vencer no jornalismo, fazê-las ser publicadas. If it bleeds, it leads, é o que os americanos dizem [expressão que sinaliza que a violência atrai audiência]. Acho que não é preciso sangrar. Acho que a alegria de alguém pode ser notícia e pode ajudar a vender. Porque é isso que são as notícias: as notícias são um negócio, são um produto.
O que é mais importante para um jornalista num contexto de conflito militar?
O mais importante num cenário hostil, como, por exemplo a guerra da Ucrânia, que é um dos que conheço, é sobreviver. É o mais importante. Temos de estar sempre com o olho aberto e tentar perceber para que lado é que podemos fugir e de onde é que devemos fugir. É inerente a toda a gente que vive num cenário de guerra. Uma coisa que aprendi quando andei a navegar com a Marinha portuguesa: fazia também exercícios de incêndio no navio porque no navio somos todos marinheiros. Na guerra somos todos soldados, somos todos povo, somos todos jornalistas, somos todos médicos, porque é preciso fazer o que é preciso ser feito com segurança, com medo – o medo é fundamental na guerra; se vamos armados em heróis, é natural que por lá fiquemos.
A adrenalina pode tornar-se num risco ou tornar este tipo de trabalho num vício?
Há leituras que falam do vício da guerra. Eu não considero que haja jornalistas de guerra. Claro que, num cenário daqueles, perguntamos muitas vezes o que é que estamos ali a fazer, quando pensamos no nosso sofá, nas nossas coisas, de casa, no nosso conforto. E depois acontece outra coisa à nossa frente que já nos desvia o pensamento e nos faz ir atrás. Não sei se isso é adrenalina, se é vontade de estar lá, se é vontade de fazer um trabalho, se é vontade de voltar. Há um conjunto de emoções. É quase magnética a guerra, para um repórter.
Foi difícil ou tranquilo o regresso ao quotidiano normal?
Foi tranquilo. Sem dificuldade nenhuma. Zero.
Quarenta dias na Ucrânia. O estado de espírito muda ao longo do tempo?
Vamo-nos habituando a ser de lá. Lembro-me, por exemplo, das primeiras sirenes que ouvi, tínhamos acabado de chegar a Kiev, de comboio. Percebemos logo que eram as sirenes de ataque aéreo e ficámos um bocado assustados, mas fomos andando devagarinho até à entrada da estação. E vimos que ninguém reagiu. Passado dois dias já estávamos iguais, já não reagíamos às sirenes.
Teria ficado mais tempo?
O tempo que fosse preciso.
É a experiência mais impactante que já viveu como profissional?
A coisa mais difícil que fiz, que me lembre, ainda me dói a alma, foi subir ao Pico. Levei uma mochila com 12 quilos de material, um disparate, e foi um sofrimento físico absolutamente incrível.
Pior do que na Ucrânia.
Muito pior. Preferia ter estado 10 anos na Ucrânia. Se calhar digo isto agora, lá não diria, mas somos animais de fácil adaptação, o ser humano adapta-se a tudo.
Alguma situação o impressionou ou emocionou mais?
Não houve um momento de mais emoção, não houve um momento de mais medo. A Ucrânia é emoção, é medo. Um país que está a ser atacado, invadido, retalhado, tudo é uma emoção. É perfeitamente anacrónico, é uma máquina do tempo. O que se passa ali não é deste tempo, é medieval. Que é o que se passa em Israel. Mesmo sem lá estar, sei o que é que lá há, porque os mortos cheiram ao mesmo, o cheiro do fumo é o mesmo, o som dos silvos dos mísseis e dos morteiros é o mesmo. As reacções que temos durante o dia e as opções que tomamos, à noite é que vêm todas cair em cima de nós. E vê-se de tudo ali.
Haveria alguma imagem que não tornaria pública?
Essa é a luta do jornalismo: o que é que devemos publicar e o que é que não podemos publicar. Eu publiquei pessoas mortas no chão. É sempre uma luta, quando estamos a olhar para uma imagem daquelas, a nossa escolha, a nossa decisão. É terrível. Há imensas imagens, durante a história da fotografia, que tem mais de cem anos, que mudaram o mundo. Foi preciso alguém morrer para alguma coisa mudar. Sou jornalista num cenário de guerra, num cenário hostil, tudo o que fizer lá é publicável. A guerra é um palco, um cenário, tudo o que acontecer ali é publicável. Nós, jornalistas, todos os que andaram por lá, e que andam ainda, foram muito importantes para aquelas pessoas, fomos megafones daquelas pessoas. Não sei se o nosso trabalho é esse, mas acabou por ser, ali. As pessoas nunca nos disseram para não fotografar, pelo contrário, chamavam-nos para mostrarmos ao mundo o que estava a acontecer ali.
Temos estado a falar de assuntos muito diferentes dos Açores, onde já vive há vários anos.
Há 18, sim. Os Açores não são um paraíso. O paraíso não existe, o paraíso é um estado. Mas eu estou em paraíso. Sinto-me bem aqui e tive uma grande necessidade de ir fotografar umas paisagens quando vim da Ucrânia e de ver coisas dentro de uma certa norma de tranquilidade.
Tem encontrado, nos Açores, motes para o trabalho na área da imagem?
Sim. Há assuntos a explorar muito interessantes aqui. Fiz um trabalho com as mulheres da terra, as lavradoras. Há um conjunto de histórias que podem ser mostradas. A fotografia tem esse valor. Fiz agora dois trabalhos que acho interessantes: um senhor que é o último chocalheiro dos Açores e um guardador de cabras.
São essas as histórias que mais lhe agradam contar?
Agrada-me contar tudo. Posso ir amanhã a Israel fotografar ou posso ir fazer uma história interessante num campo de refugiados, uma história, se calhar, de esperança. Neste momento, estou muito mais virado para a fotografia nesse sentido que acho que a fotografia tem, antropológico. Acho que é importante os fotógrafos documentais e os fotojornalistas pensarem imprimir as suas histórias. É tudo online e um dia o botão apaga-se.