O Ministério da Educação lançou o Perfil do Aluno. Quais as competências que devem ser exigidas a um aluno após 12 anos de escolaridade?
Às vezes o que está no papel é muito bonito. O problema é como se concretiza. Faz sentido o conjunto de competências que este Ministério definiu como as ideais que um aluno deverá dominar quando termina os 12 anos de escolaridade obrigatória. É curioso que seis ou sete delas fujam claramente do que habitualmente temos entendido que é a função do ensino, que é para as áreas das letras e das matemáticas. É um sinal importante de que somos mais do que apenas coisas exactas e predefinidas, quando temos todo um campo de autonomia, criatividade e unicidade. Ao contrário de 'todos diferentes, todos iguais', proponho que na educação seja 'todos iguais, todos diferentes'. É isso que o ensino não tem sido capaz de fazer. Fala-se disto há tanto tempo e ainda não demos o salto. Toda a gente já percebeu que a educação não pode continuar assim, mas ela continua na mesma. Para mim, há um conjunto de competências fundamentais: cidadania, formação para a ética e ser capaz de raciocinar. Depois disto vêm as linguagens e literacias.
Porquê estas competências?
Basta olhar para o mundo e ver o que acontece todos os dias, os atropelos àquilo que é o respeito pelo outro. Somos preparados pela sociedade para sermos indivíduos competitivos na óptica completamente contrária a cooperativos. A competição em si não é má, mas quando desenfreada sim. Veja-se quando alguém olha para o lado num teste. Anula-se, é um escândalo. Mas depois queremos que as pessoas sejam cooperativas e façam trabalhos de grupo. É um contrasenso. Por que é que a pessoa copia? Porque quer mostrar um resultado que não interessa a ninguém. Para quê os alunos perderem tanto do seu tempo a estudar, quando passados dois anos já não sabem nada daquilo. Mas, agora, é aquilo que é necessário para entrar na universidade. Então para que é preciso se depois se esquece? Há aqui algo que está errado. O ensino secundário e o ensino superior não têm nada a ver, no entanto, é o perfil de saída do 12.º ano que decide a entrada no ensino superior. Ou seja, entendemos que o perfil ideal para alguém entrar no ensino superior depende do que sabe no 12.º ano, o que para mim é um erro crasso, porque 90% do 12.º ano não serve para nada e os outros 10% esquecem-se em dois anos.
Para que serve o ensino?
Está escrito na Constituição que o ensino serve para formar indivíduos autónomos e críticos. Mas, como querem que tenha autonomia se fazem com que sejam todos iguais? Para isto é preciso uma coisa fundamental, a filosofia, porque é o que nos faz raciocinar.
A filosofia não deveria começar logo no 1.º ciclo?
Sim, por isso é que há experiências muito interessantes com miúdos pequeninos. E as pessoas perguntam: filosofia nessa idade? Claro. Os miúdos são filósofos natos. Não admitem injustiças. A filosofia conduz-nos ao raciocínio ético e ao esgrimo de argumentos lógicos. É para isto que deve servir a escola: ética, cidadania, filosofia, não é só para ensinar Matemática e Português. Na Finlândia o ensino secundário não é obrigatório e não é por isso que não está cheio de gente, mas é diferente ir por gosto ou ir por obrigação. Por obrigação não resulta. Os professores queixam-se que os alunos fazem muito barulho, pelo que não os conseguem ensinar. Mas é por não os conseguirem ensinar que eles fazem barulho. Experimentem ensinar uma coisa que tenham interesse.
A escola é que castra os jovens?
Não somos educados para responder criativamente. Somos educados para repetir. Repare-se que tem de se pedir para ir à casa de banho. Então há hipótese de não ser autorizado? Faço ali na sala? Se o aluno precisa, vai. Cá confunde-se isso com falta de respeito. Neste País tudo é falta de respeito e por isso as pessoas têm medo de falhar e de errar. A errar também se aprende. Depois queremos ter um país de empreendedorismo. Como posso ser empreendedor se sou castrado quando quero fazer uma coisa que sai um bocadinho da norma? Não podemos ensinar assim. Não temos de ter medo de fazer perguntas nem de falhar. Os alunos têm medo de se expor. Os miúdos pequenos estão cheios de criatividade e não têm problemas em fazer perguntas, mas nós matamos a criatividade na escola.
Referiu que todos concordam que o ensino deve mudar, mas continua igual há várias décadas. O que impede a mudança?
A burocracia/inércia, porque é muito mais fácil manter as coisas como estão. Acha que é fácil para um professor de Matemática juntar-se ao de Português e, em vez de ensinar a sua Matemática pela ordem que está habituado, parar e trabalhar com outro colega ao lado? O professor está habituado a trabalhar sozinho. As pessoas estão fartas de ouvir falar na Finlândia, mas é um facto que têm resultados. Eles acabaram com as disciplinas. Na rua há Matemática, Português ou Biologia? Não. Vêem-se uma série de coisas e depois fala-se sobre elas usando estas linguagens em conjunto. O que estamos a fazer é a dar tudo em separado e pedimos depois ao aluno para juntar. Assim é fácil para nós, mas para o aluno é impossível. Depois há insucesso e desmotivação. Os alunos percebem as coisas muito melhor se tiverem um problema concreto. Por que é que hei-de falar de área, dizendo que é lado vezes lado, fazendo muitas contas, quando existem tantas coisas concretas. Por que não ir à piscina com os professores de Matemática e Educação Física e enquanto fazem natação podem fazer cálculo mental, calcular o perímetro e área, fazer estimativas. Isso não vai ficar melhor na cabeça dos alunos? O que me interessa falar de percentagem se a minha filha vai a uma loja e vê um desconto de 30% e não sabe calcular mentalmente quanto custa? Então a escola é para quê?
E o que tem feito a formação de professores por tudo isto?
Espero que se acabe com a centralidade da educação. Dar um bocadinho de liberdade quando se mantém a centralidade não serve de muito, porque ainda estamos ao serviço dos outros. Queria ver o que é que as escolas escolhiam se pudessem ser elas a escolher o plano curricular. É difícil formar os professores numa metodologia e quando chegam à prática não a conseguem adoptar porque têm de cumprir o programa. Para esta nova filosofia é preciso tempo não estar obcecado com PISA e coisas do género. Fui treinador de andebol, mal de mim se quisesse formar as minhas atletas se estivesse preocupado com o jogo do fim-de-semana a seguir. O jogo é mais um treino no processo formativo. Perdi todos os jogos no primeiro ano, passados três anos só perdi um dos 36 jogos que fizemos. Não podemos pensar no curto prazo. O PISA é mais uma castração e uma invenção da conformidade desta educação do século XIX. Foi para isso que apareceu a escola: para fazer pessoas boas linha de montagem: entra o professor de Matemática aperta o parafuso, sai, entra o de Português, aperta sai… Os alunos não são para o mercado de trabalho. Isso será uma consequência positiva. Se o sistema de ensino e educação funcionarem bem, certamente teremos pessoas preparadas para serem boas trabalhadoras.
Esta mudança precisaria de um pacto governamental para 20 anos?
É evidente. Esquecer as notas, esquecer a turma. A escola tem de ser um espaço normal como outro qualquer. Tem de ser o sítio onde dê prazer estar. O ensino no pré-escolar é como deveria ser todo o ensino até à universidade: metodologia do projecto. Interioriza-se muito melhor. [LER_MAIS] A escola não pode ser para reproduzir conhecimentos, tem de ser para os alunos ganharem competências. Obviamente que os conhecimentos também entram aí, mas não é no sentido de os reproduzir, são uma base para eu saber raciocinar.
As escolas estão preparadas para este novo desafio?
Não, porque nós que formamos professores também não os formamos para isto. Temo-los formado para a realidade que são os programas, aquilo que a A3ES [Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior] nos diz que está bem e impõe. Está toda a gente a mandar em nós e não temos liberdade para fazer à nossa maneira. Por que não muda? Porque não há tempo para isso. O tempo que há é para preparar a próxima aula. As escolas e os professores também não foram formados para trabalhar por projectos, a não ser no pré-escolar. É difícil para o futuro professor ser formado de forma estanque e chegar lá e dizer: ‘junta isso tudo e ainda junta-te a um colega de outra área’. Ele precisa disso na sua formação.
Devemos esquecer os exames?
Sem dúvida. O que é um exame na vida de uma pessoa de tantos anos. O exame do 12.º ano vai definir a vida de uma pessoa. Na véspera pode ter acontecido tanta coisa e já não entra na universidade: pode ter morrido um familiar directo ou pode ter acabado com a namorada. Mas é o exame que define o que é o aluno? Define é o aluno que mais bem se adapta ao papaguear. Faz sentido que tenha de ter uma grande nota porque quero ir para o ensino superior? Então comprometo toda a minha vida, vivo em função do que vai acontecer no final do 12.º ano. Então e as competências que adquiri nos 12 anos em que andei na escola? E o que acontece às provas que não são específicas? São só aquelas que contam? Por que é que eu, que estou no ensino superior, devo achar que é o que ele sabe neste exame que me vai permitir saber no ensino superior? Quantos alunos não são brilhantes no ensino secundário, com médias elevadíssimas, e entram para a universidade e chumbam ou desistem? E quantos são péssimos alunos no secundário e têm óptimas notas no ensino superior? E outros nem entraram no ensino superior. O ensino secundário e o ensino superior não devem ter nada a ver.
Como deveria ser feita a entrada no ensino superior?
Por acordo entre o ensino superior e o candidato. Por que se entendeu que quem tem boas notas tem de ir para Medicina? Se não houvesse exames como se entraria em cursos como Medicina? Há muita gente a ir para Medicina porque tem notas elevadas e depois são infelizes. Quantas vezes foram ao hospital ver como se trabalha como médico e em interacção com os outros colegas de profissão? Que oportunidades é que são dadas no básico para os alunos irem conhecer as profissões que existem? A escola é sociedade. Por que é que os alunos não podem aprender a trabalhar com as ferramentas de marceneiro? É só quem vai para os profissionais? Quem sabe se não está ali um talento e até pode ser um óptimo artista plástico. A escola é para isso: para experimentar, não estando preocupado com exames, tendo capacidade para os orientar para adquirir estas competências. Vamos supor que não há universidade. Para que é que serve a nota do 12.º ano? Há um perfil de saída e os alunos devem ter essas competências, mas o que importa ter 10 ou 19? Se é para diferenciar os bons dos maus, deixem quem os vai receber dizer se acha que tem perfil para entrar para aqui [ensino superior]. Façam entrevistas, portefólios, cartas de interesse, de motivação. Para que é que o aluno no 5.º ano tem de ter notas? Deveria ser: domina, não domina. Há quem entenda nisto o facilitismo. Lamento. Não é verdade.
Como se penalizaria quem não cumprisse?
Vivemos numa sociedade oprimida pela religião e com o estigma do castigo e da recompensa e por isso é que não conseguimos fugir da ideia do exame. Quando dizemos que vamos tirar os exames lá vem a conversa do facilitismo. 'No meu tempo fazíamos exames, até sabíamos os rios…' E então? Que felicidade é que lhe deu isso? Agora tenho uma aplicação GPS que me leva lá. As notas são um convite ao aprofundamento das diferenças sociais, porque quem pode paga explicações. E o que são as explicações? Estamos a admitir que os professores não são capazes de explicar as coisas porque é preciso que alguém venha fora para explicar. Se os professores são incompetentes então devem sair da escola.
Mas o professor também não tem tempo.
Isso porque tem de dar o programa. A explicação e o trabalho para casa são uma aberração. O tempo que os alunos passam na escola não chega? E a família? E o judo e a natação? E a conversa com os pais? Depois queixam- se que os pais não conhecem os filhos. E querem ainda que os pais passem o pouco tempo que têm a trabalhar com eles. Trabalhar é na escola. É para consolidar? Consolida no dia seguinte. O trabalho para casa é mais um castigo. Há mais vida para além da escola.
De que forma as emoções influenciam as aprendizagens?
Só aprendemos aquilo que gostamos. Quanto muito memorizamos. A escola tem de perceber que já lá vai o tempo em que só o aspecto técnico é que interessava. Agora é o aspecto ético, estético e emocional. Somo seres racionais mas também emotivos. Um aluno que vai motivado para uma aula não está preocupado com a nota. Está lá porque gosta. Os professores têm de fazer o aluno abrir a boca não de sono, mas de espanto. Acabem com as obrigatoriedades. Isso não torna o ensino menos sério, torna-o mais relaxado, menos angustiante. Não temos de castigar ninguém, mas dar experiências às pessoas e depois elas fazem o que puderem com aquilo que aprenderam.
Qual a relação que os pais devem ter com a escola?
Nos anos mais avançados não deve ser nenhuma. Antes pelo contrário, se queremos trabalhar para a autonomia. Nos primeiros anos é muito importante. Os pais devem pôr ao serviço da comunidade as suas competências. Escola é educação. Não me interessa a questão escolar, o sucesso escolar. Interessa-me o sucesso educativo. Toda a sociedade tem de ser educativa, porque é fácil ter sucesso escolar e não ter sucesso educativo, porque sucesso escolar pode ser repetir aquilo que o professor pediu para dizer. Essas podem ser depois pessoas que não sabem portar-se numa entrevista de emprego, mas na escola eram excelentes alunos. Não pode ser esse aluno que estamos a formar. A felicidade do aluno não se mede no PISA. Quero é ver se quando tiver 40 anos tem um emprego estável, amigos e se é feliz. Por isso é que no índice de felicidade estamos cá em baixo.
Rui Matos, 51 anos, natural da Figueira da Foz, é licenciado em Educação Física, ramo de Formação Educacional, pelo Instituto Superior de Educação Física de Lisboa, Mestre em Desenvolvimento Motor da Criança, pela Faculdade de Motricidade Humana e doutorado em Motricidade Humana, pela mesma faculdade.
Foi sub-director e director da Escola Superior de Educação e Ciências Sociais do Instituto Politécnico de Leiria, na qual lecciona desde 1989. Criador da modalidade desportiva Tripela, Rui Matos, foi treinador de andebol na União de Leiria e da Seleção Nacional de Talentos Femininos.
É elemento do coro de Câmara Colliponensis e tem editados dez livros da colecção infanto-juvenil As Aventuras de Rafa, estando o 11º no prelo. Escreveu ainda Os Taxistas da Praia, O Diabo das Palavras, Vamos Falar de Desporto e Aleascript. A escrita já lhe valeu vários prémios.