O designer de som e ecologista acústico Carlos Alberto Augusto trabalhou com o Ministério do Ambiente no controlo da poluição sonora e é um coleccionador de casos relacionados com as consequências do ruído. Dois deles, conhece-os de memória: perto de Lisboa, o conflito provocou um homicídio; em Castelo Branco, um polícia reformado, e desesperado, quase chegou ao confronto físico com o dono de uma discoteca.
Sem a mesma gravidade, três acontecimentos, todos recentes, parecem ter esgotado a paciência de alguns moradores do centro de Leiria, que sofrem o impacto da cada vez mais intensa proliferação de eventos ao ar livre, e, à boleia deles, do ruído. A meia-maratona com animação sonora às sete e meia da manhã de um domingo, a prova de resistência urbana também com animação sonora depois da meia-noite de um sábado, e a corrida Fun Run que espalhou tintas e espuma com cinco mil participantes mostram que os efeitos são contraditórios – para uns, lazer e diversão, para outros, transtorno e ruas cortadas.
Entretanto, na periferia da cidade, o novo Parque Verde já é considerado um presente envenenado por diversos residentes da urbanização de Santa Clara, porque trouxe espectáculos e festas a céu aberto que se prolongam por horas, no fim-de-semana.
O Regulamento Geral do Ruído, no artigo 14.º, define que “é proibido o exercício de actividades ruidosas temporárias na proximidade de edifícios de habitação, aos sábados, domingos e feriados e nos dias úteis entre as 20 e as 8 horas”. E também de escolas (durante o período de funcionamento) e hospitais. Mas admite excepções, que explicam o que está a acontecer em Leiria e noutras cidades. Já no artigo 66.º da Constituição da República Portuguesa, lê-se, no ponto 1, que “todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado”. Têm, também, “o dever de o defender”.
No ponto 2, o texto constitucional esclarece que “incumbe ao Estado” a responsabilidade de “prevenir e controlar a poluição” e de “promover, em colaboração com as autarquias locais, a qualidade ambiental das povoações e da vida urbana, designadamente no plano arquitectónico e da protecção das zonas históricas”.
Concertos, competições desportivas, espectáculos, festas e outros eventos, se realizados fora de recintos próprios pré-existentes, são actividades ruidosas temporárias (definidas no artigo 3.º do Regulamento Geral do Ruído) que requerem uma licença especial de ruído (LER), que é emitida pela câmara municipal. É a LER concedida pelo município que autoriza a actividade – com nível sonoro máximo de 55 decibéis (A) nas habitações mais próximas ou expostas no período nocturno e 60 dB (A) ao entardecer – e define o horário, que pode estender-se pela noite dentro.
O que acontece, na prática, é que a câmara municipal “dá licença e fiscaliza” e, muitas vezes, acumula e também “é promotora”, explica Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero. Aos munícipes que se sentem prejudicados nestas situações resta accionar a polícia, que tem competência para actuar no imediato e pode suspender a actividade, queixarem-se ao município ou remeterem uma exposição para a Inspecção-Geral do Ambiente ou para a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional.
“É um tema na ordem do dia, sem dúvida” e produz “um julgamento político”, considera Francisco Ferreira. “As câmaras municipais têm de ter sensibilidade para o equilíbrio entre actividades que podem ser úteis e o incómodo que geram para as pessoas”.
Uma das soluções apontadas pela Agência Portuguesa do Ambiente é que os municípios exijam a instalação de um limitador sonoro no sistema de amplificação, com indicação externa de dados, capacidade de gravação e transmissão para efeitos de fiscalização remota e em tempo real que possibilita a quebra temporária de circuito se for ultrapassado o nível estabelecido.
Autor do livro Sons e Silêncios da Paisagem Sonora Portuguesa, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, o investigador Carlos Alberto Augusto também começa por lembrar, na conversa com o JORNAL DE LEIRIA, que as câmaras municipais “têm incumbências muito claras” em matéria de fiscalização e controlo, no âmbito do Regulamento Geral do Ruído (artigo 26.º). Quando “consentem na autorização” de eventos que invadem o espaço público, os executivos que gerem os municípios “estão a pôr em questão a sua própria autoridade”, se não forem respeitados os limites da lei e do bom senso.
“Relativamente ao ruído, não podemos, em rigor, remeter-nos a uma visão legalista do problema, porque o ruído afecta todos e a toda a hora”, sublinha. “O ruído tem efeitos sobre as pessoas e não são coisa pequena. Tem efeitos brutais”.
Para Carlos Alberto Augusto, a gestão do som é também uma questão “de poder”. A capacidade de “dominar o outro através da produção do ruído, ou de silenciar o outro, ultrapassa os legalismos”, argumenta. Nas autarquias, “para além da intervenção legal”, deve existir “bom senso e sensibilidade”, reforça, enquanto compara a poluição sonora com o despejo de efluentes nos rios e ribeiras. “As autarquias, na sua maioria, acham que vazar sons é bom. E grande parte da população aplaude”.
Num artigo publicado pela Agência Europeia do Ambiente em 2020, a propósito de um novo relatório, a especialista Eulalia Peris avisa que “o ruído ambiental e, muito particularmente, o ruído do tráfego rodoviário, continua a ser um grave problema que afecta a saúde e o bem-estar”. A exposição prolongada ao ruído é nociva e pode ter efeitos como, por exemplo, “incómodo, perturbações do sono, efeitos negativos no sistema cardiovascular e no sistema metabólico, bem como deficiência cognitiva nas crianças”.
Segundo conclusões da Organização Mundial da Saúde (OMS), que Eulalia Peris partilha, “o ruído constitui a segunda maior causa ambiental de problemas de saúde, logo a seguir ao impacto da poluição atmosférica”.
No mesmo sentido, a Agência Portuguesa do Ambiente adverte, no Guia de Harmonização da Aplicação das Licenças Especiais de Ruído, que “a exposição ao ruído ambiente pode levar a perturbações do sono, dificuldade de concentração nas actividades diárias, irritação e stress”. Essas alterações, por sua vez, “podem desencadear a produção de hormonas (adrenalina, noradrenalina e cortisol), levando a uma variedade de efeitos intermediários, nomeadamente tensão arterial elevada”. Um período prolongado de exposição a ruído “aumenta o risco de doenças cardiovasculares e de distúrbios psiquiátricos”.
“É uma situação que nos preocupa”, admite o médico Rui Passadouro, da Unidade de Saúde Pública do Agrupamento de Centros de Saúde do Pinhal Litoral, que inclui o concelho de Leiria. “O ruído em excesso, constante ou mesmo esporádico, interfere com a vida das pessoas”.

Acostumada a estudar o que não vemos, mas ouvimos, Raquel Castro considera “fundamental” o debate sobre a influência do som, em especial, nas cidades. “É bom que existam eventos, é óptimo que o espaço público sirva para o encontro das pessoas e das comunidades”, mas, “dentro de determinados parâmetros”, diz ao JORNAL DE LEIRIA. A animação “estimula a economia”, no entanto, para impedir “o esmagar de tudo o resto”, a investigadora da Universidade Lusófona acredita que “as câmaras municipais têm de ser as primeiras a dar o exemplo”.
A fundadora do festival Lisboa Soa defende “uma cidadania sonora que tem de ser mais desenvolvida”, para “exigir uma determinada ordem”, e salienta que “é crescente a consciência de como o som nos afecta”, o que coloca o assunto como “um direito e um dever”. Por outro lado, Raquel Castro reconhece que “o silêncio acaba por ser um luxo”, porque “quanto mais procurarmos proteger acusticamente as nossas casas , mais caras se tornam”.
Nos bairros invadidos pela lógica do turismo, da visitação e do entretenimento, “há sons que estão a desaparecer” e outros “que abafam” e “mascaram”, assinala Raquel Castro, logo, arrisca-se que contribuam para suprimir “determinados aspectos culturais ou hereditários de um determinado lugar”, que conferem “uma identidade”. A utilização do território que por definição é de todos obriga também a que se contrarie a monocultura do som e se reserve espaço “para os outros sons todos que fazem parte do ambiente urbano”.
A morar no centro de Leiria, Patrícia Ervilha contesta “uma espécie de guerra contra os residentes”, que, acrescenta, “têm direito ao descanso”. As iniciativas ao ar livre “deixaram de ser excepção e passaram a ser a regra”, o que considera “um excesso”, porque a Câmara de Leiria, acusa, “não faz qualquer seriação, tudo o que é para acontecer, acontece”.
“De vez em quando, claro que sim, toda a gente entende e compreende. Mas, neste momento, é permanente”, lamenta. “A vida normal e quotidiana da cidade desaparece e centra-se nos eventos”, o que só se resolverá, conclui, “com bom senso e capacidade de diálogo e de ouvir todas as partes”.
Além do ruído, há frequentemente no fim-de-semana ruas com trânsito cortado, pelo mesmo motivo. A arquitecta Helena Veludo pede “respeito pela qualidade de vida” e pela “importância do silêncio”, porque “a cidade é uma obra colectiva” e “no dia em que deixa de ter obreiros também deixa de ter interesse”.
“Não há sensibilidade para o que é habitar e é bastante claro que nenhum dos vereadores vive em Leiria”, aponta. “É inaceitável o que está a acontecer, o ruído e a forma como estão a ocupar a cidade”, acrescenta. “Toda a vida é movimento e repouso; se não temos repouso, o processo é de alienação pura”. Helena Veludo, que também vive no centro de Leiria, está convencida que “o ruído é um dos grandes factores neste momento para o não desenvolvimento do centro histórico”.
No final de Setembro, o Leiria Fun Run, que decorreu num sábado, surpreendeu os responsáveis pelo Kukicha, no Largo Paio Guterres, que se queixam de “falta de informação” e “de organização” por parte dos promotores e do município. “Foi um golpe para nós, principalmente a partir das 16 horas”, explica o gerente, José Capão. “Tinha o restaurante, literalmente, debaixo de espuma”. Não foram servidos lanches e os jantares ficaram limitados.
“Ninguém quer acabar com os eventos”, esclarece José Capão, que, entretanto, reuniu com o presidente da Câmara, Gonçalo Lopes, num encontro em que também estiveram outros comerciantes. “Não há problema nenhum desde que para uns fazerem dinheiro os outros não fiquem prejudicados”.
Questionada pelo JORNAL DE LEIRIA, a Câmara de Leiria não informou sobre a existência de queixas. O vereador Luís Lopes, numa resposta por escrito, afirma que o município “procura sempre estabelecer equilíbrio” entre eventos e qualidade de vida, numa “gestão com sensibilidade” orientada “para o descanso dos moradores, mas também para manter a atractividade daquela zona”.
Durante uma apresentação pública, na sexta-feira, Luís Lopes assegurou que a Câmara de Leiria se prepara para “referenciar todas as zonas em Leiria com potencial de produzir ruído (…) para que seja possível (…) minimizar os problemas associados”.
“Queremos melhorar esta convivência, para que a co-existência das várias actividades se faça da forma mais saudável possível”, declarou. O plano municipal de ruído tem conclusão prevista para 2023.
No Guia de Harmonização da Aplicação das Licenças Especiais de Ruído, a Agência Portuguesa do Ambiente especifica que “o ruído ambiente é um dos factores ambientais que mais queixas e denúncias gera por parte da população”. E cita o Provedor de Justiça: “A licença especial de ruído não pode ser considerada como a alienação municipal da tranquilidade pública, mediante a liquidação de uma taxa” e “não permite perder de vista o seu carácter excepcional”.