Já passaram 35 anos, mas Fátima Mendonça recorda “como se tivesse sido ontem” o dia em que deixou o antigo Regimento de Artilharia de Leiria (RAL) – onde funciona a esquadra da PSP – para se instalar no Bairro Social de Marrazes, mais tarde baptizado com o nome de Sá Carneiro, o primeiro- ministro que tomou a decisão de o construir. “Chovia muito nesse dia e foi complicado fazer a mudança, mas a alegria de entrar numa casinha só nossa, com uma casa-de-banho própria… É indescritível.”
Fátima e a família – o marido e os dois filhos – mudaram-se a 12 de Março de 1985, semanas depois do início do processo de entrega das habitações às 130 famílias oriundas das antigas colónias que, durante quase uma década, viveram no antigo quartel, em condições “prostituidoradas da integridade humana”, como descrevia um ano antes o JORNAL DE LEIRIA.
“Não vivíamos. Sobrevivíamos”, atesta Fátima Mendonça, nascida em Angola, como quase todas as mais de 600 pessoas com quem partilhou cerca de dez anos da sua vida no antigo quartel. “As casas de banho eram comuns. A luz estava constantemente a falhar. Valiam-nos os candeeiros a petróleo e as velas”, recorda.
A falta de condições de habitabilidade era, contudo, contrabalançada com o espírito de “comunidade” e de união que se gerou entre aquelas pessoas que, fugidas à guerra, acabaram em Leiria, na maioria dos casos, sem nunca antes terem pisado Portugal. Foi assim com Fátima Mendonça e foi também assim como Amélia Alegria.
“Não sou retornada. Não retornei a lugar nenhum. Nunca tinha estado em Portugal e muito menos em Leiria. Não fugi por ter feito algo de mal. Fugi da guerra”, diz Amélia Alegria, de 75 anos, que chegou ao ex-RAL apenas em 1981, cinco anos depois de ter deixado Angola. Antes, esteve alojada na Costa da Caparica e ainda tentou radicar-se com a família no Algarve.
Contudo, perante a dificuldade em arrendar casa – “era muito complicado para os retornados” – acabou por vir parar ao ex-RAL, onde esteve até a família se mudar para o bairro social, também em Março de 1985.Foi, conta, “das últimas, se não a última”, deixar o antigo quartel. “Quis preparar tudo e assegurar que já tinha ligação de água e luz.”
Mas a mudança para uma casa “digna desse nome” não significou, para a generalidade dos antigos ‘habitantes’ do ex-RAL, o fim das dificuldades. Era um facto que o problema da habitação estava resolvido, mas havia novos obstáculos a vencer, como conseguir emprego e pagar as despesas associadas à habitação.
“Como vou pagar a luz e a renda?”, questionava-se, citado pelo JORNAL DE LEIRIA, um morador no dia da entrega oficial das primeiras primeiras casas no bairro, que teve lugar no dia 8 de Fevereiro de 1985,[LER_MAIS] numa cerimónia em que estiveram dois secretários de Estado do Governo de então (Habitação e Segurança Social) e um do antigo executivo liderado por Sá Carneiro e, claro, o governador civil Rui Garcia da Fonseca, que teve um papel decisivo na construção do bairro. “Foi ele que providenciou uma solução. Levou o Dr. Sá Carneiro ao quartel, para ver as condições em que vivíamos e que, logo ali, prometeu uma solução”, recorda Amélia Alegria.
Cumprida essa promessa, faltava o que se viria a revelar como o mais difícil de todo o processo: a “boa” e “rápida” integração dos novos residentes do bairro “na freguesia de Marrazes e na cidade de Leiria”, como desejou naquele dia Garcia da Fonseca, que ainda antes de ser representante do Governo no distrito, já apoiava os alojados no ex-RAL, a quem prestava cuidados médicos.
O estigma de viver no bairro
Amélia Alegria, que durante anos presidiu à associação de moradores do Sá Carneiro, reconhece que houve dificuldade de aceitação. “A população não viu com bons olhos a ocupação do bairro pelos tais retornados. Ouvi muitos comentários. Houve um candidato a presidente da junta que se propunha a desratizar o bairro e não se estava a referir aos roedores”, conta.
A própria Junta de Freguesia chegou a enviar, ainda antes da conclusão do bairro, uma exposição ao Governo onde expressava preocupação pelos “custos sociais da integração dos retornados, com a transferência de vícios” para a sociedade local dos Marrazes, o que, no entender do executivo, justificava o “progressivo sentimento de rejeição da população em relação aos retornados”. Um sentimento que se foi esbatendo ao longo dos anos, reconhecem os moradores do Sá Carneiro, admitindo, contudo, que o estigma associado ao bairro, que se debate com alguns problemas sociais ligados à toxicodependência e à pequena criminalidade, perdurou no tempo.
“Hoje, o estigma não se sente tanto, mas houve épocas em que era complicado arranjar emprego quando tinha de se dizer que se morava no Bairro Sá Carneiro. Quando as ruas passaram a ter nome, cheguei a aconselhar pessoas a porem apenas o nome da rua, sem qualquer referência ao bairro”, revela Amélia Alegria, que, quando trabalhou na EDP, chegou a ser questionada por colegas se não tinha “vergonha” do local onde morava. A resposta era invariavelmente a mesma: “Não é o sítio que faz as pessoas, mas as boas ou más atitudes”. Essa foi também a postura que Fátima Mendonça sempre assumiu e, talvez por isso, assegura que nunca se sentiu “discriminada” nem teve problemas em dizer que vive no Sá Carneiro.
Os jovens do bairro não têm uma visão tão optimista. “Todos nós, em alguma situação, já nos sentimos olhados de lado só pelo facto de vivermos aqui”, queixa-se Carla Leal, operária fabril de 23 anos que o JORNAL DE LEIRIA encontrou na tarde de sexta-feira em amena cavaqueira com grupo de amigos numa das ruas do bairro.
Ao lado, Henrique Francisco, de 20 anos, que, tal como a maioria dos restantes elementos do grupo, é filho de pais angolanos, admite que hoje o estigma “não é tão grande”, mas ainda se revolta quando se lembra do tempo em, “sempre que acontecia qualquer coisa de mal” nos Marrazes, “o Sá Carneiro é que pagava”. Admite, contudo, que “a fama” era acompanhada de “algum proveito”.
“Antes, isto tinha outro andamento. Era duro. Mas não tanto como se dizia”, ressalva o jovem, que aproveita a oportunidade para reclamar um espaço onde os jovens do bairro possam conviver, como acontecia “no tempo do autocarro”, onde eram desenvolvidas actividades para os mais novos.
Moradores mais velhos pedem mais polícia
Se os jovens reclamam mais iniciativas para se ocuparem, os mais velhos queixam-se da insegurança e pedem mais policiamento. “Patrulhas todos dias no bairro é o que queremos. Isto está complicado”, desabafam dois moradores. O problema, diz um deles, “é que a malta nova não tem nada com que se ocupar e entretém- -se a fazer asneiras”.
Presidente da associação de moradores do bairro há três anos, Manuel Gaspar reconhece que “há problemas”, mas, alega, “não serão muito diferentes daqueles que existem noutros pontos da cidade”. “Não há tanto proveito como fama”, diz, embora seja apologista da presença da polícia no bairro como forma de “dissuadir determinados comportamentos” e reforçar a segurança dos moradores.
“Todos temos a ganhar com a melhoria do ambiente do bairro”, defende aquele dirigente, que, não vivendo lá, se considera do bairro, onde tem família e amigos do tempo em que viveu no ex-RAL. “Casei meses antes da conclusão do bairro”, justifica, assegurando que “as raízes não se esquecem”. E foi em nome delas que aceitou o desafio para reactivar a associação, que, desde final de Novembro, tem sede própria, instalada junto ao campo de jogos, carecendo ainda de alguns acabamentos.
O objectivo, explica Manuel Gaspar, é que o espaço possa funcionar como “ponto de encontro e de convívio” entre os residentes do bairro. “Este espaço não é nosso, da direcção, é dos moradores”, afiança. Ao lado, Fátima Mendonça, que não integra os órgãos sociais da associação, mas que coordena o atelier de artes decorativas do projecto Viver Melhor que tem uma exposição no local, abana a cabeça em jeito de concordância. “É muito importante promover o convívio entre os moradores e estimular o espírito de comunidade”, diz. E quando lhe perguntamos o que sonha para o seu bairro, responde prontamente: “Que seja limpo, seguro e com sã convivência”. Um desejo que, é, certamente partilhado pelos restantes moradores, sejam aqueles que ali vivem desde a origem, sejam aqueles que, entretanto, se lhes foram juntando.