Quando deixou a Câmara Municipal da Marinha Grande, depois das últimas eleições autárquicas, Raul Testa decidiu especializar-se na economia digital, já a pensar na possibilidade de colaborar à distância com um empregador fora do País. “Rapidamente, percebi que não queria procurar trabalho em Portugal”. Todas (ou quase todas) as ofertas publicadas por empresas estrangeiras davam a conhecer a proposta de salário e nenhum (ou praticamente nenhum) anúncio de empresas portuguesas seguia a mesma prática. Além da transparência, a principal diferença, contudo, está no valor da remuneração: a trabalhar cá dentro para fora “ganha-se três ou quatro vezes mais, em média”. É um contrato de emigrante, sem precisar de emigrar. E uma fuga de cérebros, em nova versão.
Nos últimos anos, sobretudo desde o ínicio da pandemia, os empregadores estrangeiros compreenderam que podem contratar talento mais barato em Portugal, se oferecerem ao colaborador a possibilidade de se manter no País, a receber pelos padrões internacionais, ou seja, com um acréscimo considerável de poder de compra.
“Cá, um recém-licenciado entra no mercado de trabalho a ganhar mil euros, enquanto nos Estados Unidos ou no Norte da Europa o nível de entrada está nos três mil. Se a empresa estrangeira lhe pagar dois mil, está a dar-lhe o dobro do que ele ganha, o que é irrecusável. Mas, ao mesmo tempo, está a pagar um terço abaixo do que pagaria se recrutasse no próprio país”, explicou José Paiva, fundador da Landing Jobs, num artigo publicado pelo Expresso.
Outro quadro de topo da Landing Jobs, Pedro Moura, avançou em Outubro ao portal Sapo que “quase 20 por cento da força de trabalho tecnológico em Portugal” já está “a trabalhar remotamente para além-fronteiras”.
O estudo Global Tech Talent Trends 2022, promovido pela Landing Jobs, que é especializada em recrutamento, indica que na área das tecnologias de informação as empresas estrangeiras despendem, em média, mais 46% em salário do que as portuguesas.
Uma reunião, vários fusos horários
A residir perto da nascente do rio Lis, na aldeia das Fontes, Raul Testa trabalha a partir de casa e gere o próprio horário. Diariamente, à uma e meia da tarde, reúne com a equipa, que inclui pessoas a viver nos Estados Unidos, no Canadá, no Brasil, na Europa e nas Filipinas. Detida por dois norte-americanos e um finlandês, a Rome Blockchain Labs, que tem sede no Delaware, território conhecido por ser um paraíso fiscal, costuma pagar nunca menos de 60% do que se recebe em Nova Iorque para a mesma função.
“É uma empresa com toda a gente em trabalho remoto”. Meia centena de trabalhadores espalhados pelo mundo e o antigo colaborador da Câmara da Marinha Grande (e, antes, da Câmara de Leiria) é o único em Portugal. Na tecnológica dos Estados Unidos encontrou “uma filosofia muito interessante, porque não existem hierarquias”, só responsabilidade. “É totalmente horizontal, não temos chefes”.
O produto principal da Rome Blockchain Labs é um agregador de plataformas de criptomoedas, disponível em app ou website, que permite gerir portefólios e encontrar novas oportunidades de investimento. A missão de Raul Testa contempla “um misto entre design, programação e teorias de comportamento humano em internet”, para melhorar a experiência do utilizador. “Sou eu que decido em que lugar estão os botões numa aplicação”.
Sobre o último ano, destaca o ambiente “muito exigente”, mas “muito interessante”, com “mais oportunidades de crescimento”. E acredita que a tendência de trabalhar cá dentro para fora “vai crescer”. Portugal “é tão castrador para os trabalhadores”, comenta, “que até na área das tecnologias de informação, do desenvolvimento tecnológico, os trabalhadores são mal pagos”. O que o leva a concluir: “É inevitável que as empresas portuguesas tenham cada vez mais dificuldade em contratar enquanto não mudarem a mentalidade”.
Empregadores portugueses sob pressão
Na Void, a adaptação já está consumada, face a uma realidade sem fronteiras, potenciada pela escassez de recursos humanos no sector das tecnologias de informação, sobretudo programadores seniores, com experiência. “Neste momento, a nível mercado de trabalho, nós concorremos globalmente, enquanto antes a concorrência para o talento era local”, reconhece João Mota, um dos administradores da empresa de Leiria, onde é responsável pelo desenvolvimento do negócio. “No fundo, temos de pagar mais”, explica. “Há condições standard lá fora, que rapidamente tivemos de acompanhar”. Por exemplo, o teletrabalho, que alguns colaboradores preferem.
Desde os primeiros confinamentos provocados pela Covid-19, “os salários a cada ano têm aumentado entre 20 a 30 por cento”, segundo João Mota. “Nós só perdemos colaboradores para empresas de fora”, assinala. “Começou em 2020, nesse período perdemos alguns colaboradores para este tipo de concorrência, de forma algo inesperada e abrupta”. A situação agrava- se porque, em alguns casos, os empregadores estrangeiros “chegam a pagar o mesmo” que pagam a quem vive nos Estados Unidos ou no Reino Unido, entre outros exemplos.
Em suma, “dois anos desafiantes” para a Void, reconhece João Mota, que vê “talento a ser expatriado” e alerta para as consequências. Por um lado, o valor acrescentado “está todo a ir para economias estrangeiras”, porque os empregadores não pagam impostos em Portugal, por outro, o acréscimo de concorrência para contratar “é dramático para empresas como a Void e outras”.
Leiria, Brasil e Islândia
Não são apenas as tecnológicas. O mesmo se passa noutros sectores de actividade, como o turismo. Rafael Cardoso, de 34 anos, trabalha à distância para uma empresa com sede na Islândia. Prepara pacotes de luxo para turistas, 90% deles oriundos do Brasil. Já o fazia na Islândia e continuou quando regressou a Portugal, no final do Verão do ano passado. Tem contrato com a empresa islandesa e recebe na moeda do país (a coroa) numa conta de um banco islandês.
“Trabalho em casa, todos os dias, só de vez em quando é que tenho de ir à Islândia”. Encontrar no mercado de trabalho em Portugal uma remuneração equivalente para a mesma função não seria fácil. “Não, tenho noção que não”, admite. A ideia é manter-se no emprego, pelo menos enquanto espera pelo novo apartamento, na urbanização de Santa Clara, em Leiria. A namorada, Sara, trabalha para o mesmo empregador, na gestão de redes sociais, também a partir de casa. Vivem na Maceira.
A história do casal com a Islândia iniciou-se há oito anos, quando emigraram, através da VidaEdu. Começaram por trabalhar num complexo turístico perto de uma queda de água, na loja. Com refeições e alojamento incluído, além do salário, já superior à média portuguesa. “A primeira pessoa que conhecemos em Gullfoss foi um rapaz de Leiria que estava lá no mesmo pacote que nós, com a namorada”. Foram ficando, mudaram de emprego e de cidade, sempre no sector do turismo, compraram casa e carro.
As noites longas de Inverno, os meses em que quase não se vê o sol, a sensação de isolamento, são compensados pela beleza da paisagem, a simpatia da população e uma sociedade bem organizada. Nos últimos meses, nova experiência: a instabilidade vulcânica. “Da nossa janela do quarto conseguíamos ver a lava”, conta Rafael Cardoso. Com o nascimento da filha, voltaram a Portugal, mantendo o emprego. O melhor cenário possível. “Achei impecável, podia trabalhar a partir de casa”.
Politécnico bem posicionado
No sector das tecnologias de informação, há quem identifique no Brasil a solução para as empresas portuguesas captarem programadores. O Politécnico de Leiria oferece a pós-graduação em Business Culture and Technology, em parceria com a B11, destinada a profissionais com seis anos ou mais de experiência, que envolve aprendizagem de inglês, actualização tecnológica e cultura no ambiente de trabalho. Visa, precisamente, suavizar a transição para a Europa.
Das duas dezenas de inscritos, que vieram do Brasil para Leiria, a maioria trabalha para empresas em Portugal, mas também, alguns deles, remotamente, para a Irlanda. “Profissionais altamente qualificados”, explica Vítor Ferreira, director da Startup Leiria, que confirma um aumento do número de pessoas na região a trabalhar para o estrangeiro. “O mercado passou a ser global e procura-se talento em todo o mundo”.
Mais qualidade de vida
A rotina de Teófilo Oliveira mudou radicalmente ainda antes da pandemia. Novo emprego, novo sector de actividade e novos horários. Primeiro, em teletrabalho para uma empresa em Portugal; depois, remotamente, para uma empresa com sede em Malta, que absorveu a primeira. “Era um dos objectivos que eu tinha para mim próprio: antes dos 30, estar a trabalhar remotamente”.
Com mestrado em Direito Internacional, trabalhou no Ministério dos Negócios Estrangeiros e depois na banca corporativa, mas saiu para o sector das tecnologias de informação, atraído pela “possibilidade de a muito curto prazo”, de facto, cumprir a meta pessoal. Valeram o domínio do inglês e as competências habitualmente chamadas soft skills. “Mostrar que era capaz de levar este tipo de projectos a bom porto”, diz ao JORNAL DE LEIRIA.
Actualmente com 33 anos de idade, é gestor de projecto na Sporting Tech, que opera no mercado B2B (empresas para empresas) e fornece plataformas de jogo online para casinos e sites de apostas. A flexibilidade proporcionada pelo empregador permitiu-lhe, durante a pandemia, regressar a Leiria e ter “mais alguma proximidade com a família e com o grupo de amigos”, além de oportunidades para viajar de mota, uma paixão. O preço das casas, mais baixo em Leiria do que em Lisboa, também pesou. Contas feitas, “a grande mais valia do trabalho remoto para um trabalhador é sem sombra de dúvida a qualidade de vida”, aponta. “Sou mais produtivo, estando no espaço em que gosto de estar”.
Teófilo não trabalha sempre em casa, prefere deslocar-se para espaços públicos, por exemplo, uma biblioteca ou uma esplanada. Na equipa, lida com clientes na América Latina e com programadores que estão na Europa, em vários países. “Temos fusos horários bastante distintos mas as coisas funcionam bem”, garante. Há algumas reuniões online, mas, na maior parte do tempo, cada um gere o respectivo horário. As perspectivas de carreira mudaram. “O meu mercado e o mercado para o qual eu me posso candidatar é um mercado global”.
Segundo dados da Autoridade Tributária publicados pelo Expresso, quase 25 mil residentes em Portugal declararam rendimentos obtidos no estrangeiro em 2021, número que inclui os portugueses que trabalham para fora, mas, também, os estrangeiros que vivem em Portugal como nómadas digitais.