Recentemente, a presença de Jean Wyllys na Universidade de Coimbra provocou a convocação, pelo partido de extrema-direita PNR, de uma manifestação contra o ex-deputado brasileiro, acontecendo mesmo uma agressão contra o ex-parlamentar, numa agressividade a que não estamos habituados em Portugal. Onde está o povo acolhedor e de bandos costumes?
Essa é uma questão que precisamos desconstruir. No CES e em outros lugares, uma das coisas que se tem vindo a desconstruir é a ideia de "povo de brandos costumes", que foi alimentada pelo mito do luso-tropicalismo, isto é, a ideia de que o colonialismo português foi brando, diferente e de que os portugueses têm maior capacidade de miscigenação. Foi uma ideia que ajudou a manter o império colonial até tão tarde e é bom que seja desconstruída. Alguma desta extrema-direita mais musculada que está a aparecer tem vários incentivos, embora ninguém saiba muito bem o que está a acontecer. Durante muito tempo, não se antecipou um Trump ou um Brexit, não se antecipou uma destituição [de Dilma Rousseff] no Brasil ou um Bolsonaro. A força da extrema-direita e o que aconteceu com a vinda de Jean Wyllys a Portugal tem muita influência da realidade brasileira e do que se tem vindo a assistir no resto do mundo. Se a partir de Portugal, uma força de extrema-direita, como o PNR, que se achou sempre que não teria muitas hipóteses para crescer, como acontece com movimentos semelhantes noutros países, começa a ter comportamentos mais "musculados" é porque tem espaço e oportunidade para o fazer. Essa é a primeira questão, mas há outra que também é importante. Não é só a extrema- direita que está a aparecer mais, isto é também reacção a uma discussão que começa a aparecer em Portugal e que tem de ser feita! É importante percebermos quem somos, desconstruirmos as imagens que existem acerca do País e que não são verdadeiras. Temos de desconstruir a imagem de que não somos um país racista e que temos “brandos costumes”… Há muitas vozes que, durante toda a nossa história, foram silenciadas, como as dos movimentos de afro-descendentes… pessoas que estão a reivindicar que a sua narrativa histórica seja ouvida e que começam a ter influência na História que é contada.
Leia aqui a segunda parte da entrevista:
“Quantos pais acham normal um filho brincar com uma boneca?”
Isso pode provocar reacções…
Num primeiro momento, mas não me parece que seja uma coisa, só por si, negativa. Obviamente, não me estou a referir aos episódios de violência. Estive recentemente com Mamadou Ba e ele disse que, por mais que lhe tenha pesado tudo o que aconteceu na sequência da intervenção policial no Bairro da Jamaica e da cobertura mediática que foi dada ao caso e à manifestação feita na Avenida da Liberdade – e ele foi ameaçado e sofreu consequências por ser o porta-voz desses movimentos -, o que é certo é que permitiu discutir um assunto que os portugueses e as portuguesas não gostam de discutir, porque, alegadamente, “não somos um país racista”. Quando se diz que Portugal é um país racista, não se está a afirmar que os portugueses são todos racistas, mas que existe uma estrutura social que o é. Uma estrutura que atravessa as instituições, que atravessa o País, que nos atravessa muitas vezes. É uma construção… Todos aprendemos os Descobrimentos, todos aprendemos a Guerra Colonial, mas não aprendemos as narrativas das Lutas de Libertação. Aprendemos a História do lado de quem tem poder, do lado dos colonizadores, mas não aprendemos a História a partir das perspectivas de quem sofreu e resistiu à violência. O que tem vindo a surgir são outras vozes, outras narrativas daquilo que somos e daquilo que foi a nossa História, e é óbvio que isso irrita o PNR… Olho para esse grupo e não parecem ser mais do que eram há uns anos. Na conferência com o Jean Wyllys, o atirar dos ovos aconteceu lá dentro e não na rua, onde as coisas foram mais agressivas. Mas fiquei orgulhosa por ver que, na minha universidade, no meu País, a pessoas na contramanifestação a defenderem os valores da democracia e a favor de Jean Wyllys eram muitas mais do que as reunidas pelo PNR.
No panorama político, estamos a assistir a uma polarização entre direita e esquerda, entre certo e errado, entre bom e mau. Acabou a moderação e os encontros a meio do caminho?
Há várias coisas em causa no fenómeno da polarização e, naquela que acontece entre esquerda e direita, há muito espaço para o populismo. O modelo capitalista neoliberal está a falhar e em crise. E não é uma crise temporária. Toda a gente o sabe. O modelo está esgotado. Todas as promessas que fizeram à nossa geração e à que vem depois de nós estão a falhar. Todos tivemos mais oportunidades do que os nossos pais e os nossos filhos não terão mais do que nós, pelo contrário. Tivemos acesso a uma escola pública de qualidade… A Educação e Saúde públicas são das coisas que mais me preocupam neste momento. Quando vejo o descontentamento e a desmotivação dos professores e das professoras, o desprestígio do papel dos docentes do ensino secundário, fico assustada. É no ensino secundário que começamos a pensar criticamente e não devemos apenas ler e interiorizar. Diz-se que as crianças não lêem, mas as pessoas têm acesso a informação produzida em todo o mundo e, se calhar, mesmo não lendo livros inteiros, estão a ler outras coisas. O que é preciso é que aprendam a ler criticamente e temo que isso não esteja a acontecer! Este modelo capitalista neoliberal está a falhar e, simultaneamente, dizem-nos que não há alternativas, veja-se o discurso da Troika em Portugal. Qualquer pessoa ou movimento que apareça agora a dizer que tem uma alternativa válida, consegue aproveitar-se da fragilidade dos cidadãos para uma manipulação emocional dessa vulnerabilidade. É o que o populismo faz. Coloca-nos a "nós" contra "eles" e há pouco espaço para se ser moderado. As pessoas sentem que "isto está mal" e que alguma coisa mais radical tem de ser feito, seja à esquerda ou direita.
Também há polarização entre etnias como se viu no Bairro da Jamaica.
A polarização entre brancos e negros sempre existiu, mas para quem vive no lado do privilégio é possível só agora se ter apercebido dela. As redes sociais tiveram um papel importante nisto e é muito fácil ver alguém, de classe média e branco, a questionar se não estamos a polarizar as questões entre negros e brancos. Não, não estamos! Sempre existiu o outro lado. Por exemplo, a questão da gentrificação… até parece que é uma coisa nova, mas perguntem a um cigano se é nova, perguntem a um imigrante da periferia de Lisboa. Houve sempre pessoas que jamais tiveram um lugar no centro da cidade. Só passou a ser um problema, a partir de 2011, com a crise e a entrada da Troika, quando apareceu uma série de problemas que uma parte da [LER_MAIS] população nunca teve, desde que, em 1974, a democracia nos trouxe um conjunto de garantias e os direitos à habitação, à educação à saúde e ao trabalho. Mas as comunidades ciganas, por exemplo, nunca os tiveram. As comunidades de pessoas negras e imigrantes sempre tiveram muito mais barreiras para acederem a esses direitos. O que acontece agora é que algumas pessoas, que tiveram acesso à educação e formação, começam a ser porta-vozes desses grupos. Quero acreditar que as coisas estão a melhorar, mas temos de perceber que existem diferentes tipos de desigualdades no País. Veja-se os o caso dos ciganos. São portugueses, estão há 500 anos em Portugal… não há uma linha nos manuais escolares sobre a chegada das suas comunidades ao País e sobre o seu papel na história de Portugal. Isto empobrecenos a todos e a todas.
Há relatórios que indicam que a comunidade cigana é a mais visada quando se trata de xenofobia. Mas há várias práticas culturais que chocam com aquilo em que boa parte dos restantes portugueses acredita. Por exemplo, as jovens ciganas obrigadas a casar em casamentos negociados. Quando a comunidade não cigana constrói pontes, do outro lado, não deveria existir um esforço semelhante?
Fazem-se estas perguntas poucas vezes aos ciganos e às mulheres ciganas. Há muitos líderes de organizações que falam muito bem sobre estes temas, sobre o que experimentam e vivem. Há tempos cheguei a Lisboa com destino ao bairro da Cova da Moura. Entrei num táxi e quando disse para onde ia, o taxista respondeu que não me levava lá. "Porque é perigoso, porque estou farto do que acontece lá!" Naquele momento, eu senti raiva e humilhação. Eu, que sou branca e privilegiada senti-me humilhada. Imaginem o que sentiria se toda a minha história individual e da minha família assentasse na humilhação permanente e na violência sobre mim. Como é que se diz que os ciganos “não estão dispostos a dialogar”, se isso, efectivamente, nunca foi tentado de uma forma estruturada. O público quer inclusão ou integração. Isso significa o quê? Que as pessoas ciganas "se civilizem" e se "integrem", mas nos termos definidos pela norma dos privilegiados? Alguém está disponível para fazer esse diálogo? "Quero dialogar contigo, mas quero que esqueças a tua cultura, a tua forma de estar e que te integres naquilo que é a minha definição do que é a norma e do que é o bom comportamento." As comunidades ciganas são toleradas e os outros cidadãos acham-se superiores quando toleram a diferença. Reivindico uma sociedade onde sejamos todos mais ricos, com mais conhecimento, com mais cultura e diversidade, mas, para isso, tem de haver um diálogo que não assente numa hierarquia das pessoas brancas e de uma determinada cultura sobre as pessoas ciganas. Muitas vezes, na escola, os miúdos tem de fingir que não são ciganos. Houve uma activista cigana que me disse (cito de memória): "somos o 007 da sociedade. Temos de ser invisíveis. Neste momento, não posso ir trabalhar porque estou de luto. E não consigo passar por não cigana. A partir do momento em que, no meu trabalho, saibam que sou cigana, serei posta na rua." Há muitos mitos. Dizem que vivem todos do Rendimento Mínimo Garantido e em casas oferecidas. Não é verdade e há demasiado ruído. Se concordo com casamentos prematuros? Não concordo, mas não posso julgar uma cultura à luz dos meus valores, não posso julgar uma cultura por uma prática e muito menos fazer um ativismo que não envolva as mulheres que vivem essa realidade. Para se estabelecer diálogo, tem de haver aprendizagens de todas as partes envolvidas.
Foco no Entendimento do Outro
Sara Araújo é natural de Leiria. Doutorou-se em Sociologia do Direito com uma tese sobre Pluralismo jurídico e Epistemologias do Sul. Fez parte da equipa de coordenação do Projecto Alice, hoje transformado em Programa de Investigação em Epistemologias do Sul. Pertence ao colectivo que coordena a Universidade Popular dos Movimentos Sociais na Europa e fez parte do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (2003-2005), tendo também sido membro da equipa de investigadores do Centro de Formação Jurídica e Judiciária de Moçambique (2005-2006) e investigadora associada do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane (2008-2010). A sua investigação tem sido apontada ao pluralismo jurídico, constitucionalismo transformador, cartografias jurídicas pós-abissais, Direitos Humanos e interculturalidade, educação popular, ecologia de saberes e de justiças. Em 2008, recebeu o Prémio Agostinho da Silva da Academia de Ciências de Lisboa.