“Oh velha, o que dás pró enterro?”. Rafaela Crespo, de 72 anos, já esperava os serradores à porta de casa. Como é uma das pessoas mais velhas da aldeia da Torre, sabia que naquela noite ia ser serrada.
A habitante da aldeia da Torre, na freguesia de Reguengo do Fetal (Batalha), ainda se lembra quando era jovem e via os vizinhos a cumprir a tradição da Serração da Velha. Naquela altura, este costume era realizado pelos rapazes mais rebeldes, cujo escárnio divertia (ou não) os mais idosos, quando perguntavam que ofertas deixavam para o dia do seu enterro.
A tradição da Serração da Velha foi-se perdendo por volta dos anos 80 e é com alegria que Rafaela Crespo, agora mais velha, recebe os serradores na sua casa, na terceira quarta-feira da quaresma. “É bonito trazer o antigo cá para cima, faz falta”, afirmou, já com uma travessa de filhós pronta para distribuir por todos, naquela que foi a primeira paragem do trajecto.
Antes de começar o percurso, os participantes juntaram-se no Largo da Lagoa e, por cada pessoa que passava, alguém lançava a mesma pergunta: “Então, não vens connosco serrar as velhas? Anda lá, tu fazes barulho!”.
As pessoas foram chegando. “É aqui que se junta a malta para fazer barulho?”, alguém perguntou, já com a panela na mão pronta para batucar.
Rosa Menezes foi uma das participantes. Filha da terra, ainda se recorda das histórias antigas. “Íamos de casa em casa, dos mais antigos, e perguntávamos ‘Oh velha, o que dás para o enterro?’, e normalmente eles diziam o nome de um terreno que tinham, uma coisa mais valiosa. Se fosse pouco valiosa, nós dizíamos ‘Isso não chega, tem de ser uma coisa com mais valor!’. Outros não tinham nada para dar, e diziam ‘Não tenho nada para dar, dou-vos a borda de um alguidar’, e depois fazíamos barulho”, lembra.
Naquela noite, Rosa Menezes levou as filhas. Sabe que os mais novos nem sempre conhecem estas tradições. “Estes garotos mais novos não tinham experienciado isso. Por exemplo, as minhas filhas. Eu sempre as incentivei e elas andam aqui também, mas há outros que nem sequer conhecem”, lamenta.
Acácio Carreira participou na Serração da Velha pela primeira vez. Desafiado pela mulher, Sandra Pedroso, que também marcou presença, não levou nada para fazer barulho, mas outros participantes tinham levado objectos a mais. A partilha não foi um problema.
“Estou à espera de diversão, principalmente. E não só, tenho uma certa curiosidade em conhecer o que houve em tempos”, comentou.
Pelas ruas íngremes, lá foram os serradores, com um carrinho de compras iluminado à frente que levava um cartaz com a frase que os caracteriza: “Oh velho, o que dás para o enterro?”. A subida foi longa e barulhenta e, logo na segunda casa visitada, a oferta permitiu aquecer o corpo naquela noite fria. Um copo de vinho, ainda de uma garrafa por abrir, e umas bolachas para acompanhar. Serração feita, segue o próximo.
Tradição quebra isolamento
Mais do que recuperar a tradição, a Serração da Velha ajuda a quebrar a solidão de muitos idosos.
Eva Vieira, uma das organizadoras, lembra-se do primeiro ano da Serração da Velha, em 2022, ainda durante a pandemia de Covid-19. “O feedback era ‘Para o ano voltem à minha casa’. Receberam-nos tão bem e queriam que ficássemos mais um bocadinho para mais um copo. Isso mostrou que, realmente, fazíamos um bocadinho a diferença na vida daquelas pessoas”, disse.
Desde que surgiu a Aldeia Pintada, em 2020, a Torre ganhou mais cor. “A nossa aldeia sempre foi conhecida pelo bairrismo. As pessoas andavam na rua, conheciam-se e gostavam de paródia”, recorda Eva Vieira. A Aldeia Pintada quis reverter o ciclo de abandono da aldeia, que se estava a tornar numa “residencial”.
“Penso que, desde o projecto, as pessoas começaram a ter de volta este sentimento de bairrismo. Pode não ter nada a ver com o projecto, mas até nós, que somos mais novos, conseguimos ter mais ligação com as pessoas mais velhas”, considerou esta jovem.