Esteve em Leiria para participar numa conferência sobre os caminhos da social-democracia em Portugal. Que futuro vê para a social-democracia?
A social-democracia assenta em valores como a liberdade, o mais importante, e associado a ela a criação de condições para que haja igualdade de oportunidades para todos. Uma sociedade com fenómenos de pobreza e de exclusão social muito gritantes não é uma sociedade livre. A social-democracia tem muito para fazer nesta área, seguindo os seus valores. Os socialistas entendem que deve ser o Estado a comandar todas as operações para resolver os problemas do País. O PSD considera que o Estado tem um papel importante nas funções de soberania e sociais, mas entende que a sociedade civil deve desempenhar um papel activo na economia e no combate às desigualdades. O PSD assentou sempre na ideia de que um país só progride com uma classe média forte.
E neste momento temos uma classe média enfraquecida.
Mais do que enfraquecida, está a desaparecer. Os salários são nivelados por baixo, os jovens estão a emigrar. Se continuar muito tempo assim, aos governos caberá a gestão da miséria. Acredito que a social-democracia tem muito futuro no nosso País. É tão evidente e tão óbvio que são precisas reformas de fundo, para que a classe média assuma esse poder.
Por onde começaria a reformar?
É difícil dizer qual a reforma mais premente. Mas talvez começasse pela parte fiscal. Com o sistema fiscal que temos, é difícil pôr a classe média a levantar a cabeça. O IRC devia sofrer um grande corte.
A que mínimo devia descer o IRC?
Defendo 20%. É um corte muito grande e que representa uma enorme perda de receita fiscal, mas é uma perda virtuosa, porque traria mais crescimento. Baixar o IRC é um bom investimento. A perda de receita nos primeiros anos é compensada pelo crescimento económico nos anos futuros. Outro problema que temos no País é a instabilidade fiscal. Há sempre decretos e leis de ordem fiscal a mudar, o que cria uma desorientação total para quem quer investir e pensar a médio prazo. Mesmo em política, o médio prazo é fundamental. Ultimamente, é tudo para o dia-a-dia. Precisamos de ter uma visão estratégica para o País. Ter um rumo e não andar com constantes desvios e solavancos.
Com o dinheiro do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) a chegar, este pode ser o momento para avançar com a reforma fiscal que defende?
Pode, se o dinheiro for bem aplicado. Na parte económica, o dinheiro devia ser gerido pelos empresários. Estou a pensar, por exemplo, nos sectores do calçado, do têxtil ou dos moldes. Havendo um envelope financeiro para esses sectores, deveriam ser os empresários a geri-lo, obviamente com alguém das Finanças e da Economia a supervisionar e a fiscalizar. Isso daria outra credibilidade e eficácia à gestão desses dinheiros. Temo que as verbas do PRR venham a ser cheques para os ministérios.
Receia que seja mais uma oportunidade perdida?
Receio. Os ministérios estão muito aflitos. A Saúde é um caso evidente e irá beneficiar muito – e bem – com estas verbas. Mas nos outros ministérios vai ser muito difícil resistir à tentação de não usar o PRR para os seus orçamentos, prejudicando fortemente a componente económica. Espero estar enganado, mas [LER_MAIS]há sinais que apontam nesse sentido.
Na área laboral que mudanças vieram para ficar no pós-pandemia?
Trabalhei muito nessa área e fui protagonista de vários acordos na concertação social. Não se deve mexer muito na área laboral. Também aqui é preciso estabilidade. É óbvio que a pandemia veio trazer outras realidades, como o teletrabalho. Há que fazer algumas adaptações em função das aprendizagens que se fizeram a este nível. Agora, tentar mexer em tudo, como alguns partidos de esquerda querem fazer, andando para trás, seria um erro que se pagaria caro. O Bloco de Esquerda e o Partido Comunista têm horror ao privado. Eu, pelo contrário, não tenho, mas entendo que se deve colocar o privado nas malhas certas. Na ideologia deles a solução era nacionalizar tudo. Deixavam apenas pequenas coisas no privado. O resto passaria para a esfera do Estado. Seria um retrocesso social.
Os resultados das autárquicas podem indiciar a inflexão do ciclo político?
Não correu bem para o poder político actual. Há sinais de algum esgotamento. Lisboa é o caso mais flagrante. Mas estamos longe de podermos pensar que está tudo resolvido. É preciso ver o que irá acontecer nos próximos tempos. Nas questões sociais fundamentais o PS está refém do BE e do PCP. Por mais que disfarce, esta é a realidade. Quem governa nos aspectos fundamentais da sociedade é o PCP e o BE. Há um desgaste claro do Governo, especialmente do primeiro-ministro, que cometeu um erro crasso pela forma como se envolveu nestas eleições. Defendo a estabilidade e que os mandatos devem ser cumpridos até ao fim. Seria mau termos agora uma crise política. Mas nas próximas legislativas o PSD tem condições para disputar as eleições com o PS.
E será com Rui Rio?
Rui Rio saiu claramente reforçado destas eleições, mas não sou capaz de fazer futurologia sobre quem será o líder do PDS daqui a dois anos. O Dr. Rui Rio tem condições para isso. A primeira condição é ele querer. Depois, os militantes também têm de querer. Ele tem a obrigação de se recandidatar no próximo congresso, em Janeiro. Se aparecer alguém a disputar a liderança com ele, será bom. É sinal de vitalidade.
Coordena o grupo de trabalho para a reforma do Estado do Conselho Estratégico Nacional do PSD. Além do sistema fiscal, de que já falou, que outra reforma considera prioritária?
A regionalização. Não é uma questão nova. Alexandre Herculano já era um descentralizador e um reformador e teve adversários na altura. A classe política em Portugal é hoje muito conservadora. Os próprios partidos estão organizados de cima para baixo, em estruturas muito conservadoras. Falta-lhes rasgo e coragem para poderem aceitar reformas que se vejam, como a regionalização. Depois, faltam convicções. Para se estar na política são precisas três ou quatro convicções fortes. Vejo hoje na política gente com poucas convicções e que vão oscilando. À segunda-feira têm uma, à quarta outra e ao fim- -de-semana outra. Isso não é credível. A opinião pública apercebe-se. A regionalização é uma reforma necessária. É possível fazê-la, diminuindo a despesa do Estado.
Se tivesse havido regionalização, o combate às assimetrias regionais teria sido mais eficaz?
Com aquele mapa, não. Votei contra. As regiões não podem separar o litoral do interior. Em cada região devem ficar territórios mais pobres e mais ricos. A divisão lógica é a das actuais comissões de coordenação regional. Estamos a assistir a um desastre completo com o despovoamento do interior e concentração no litoral. É um duplo desperdício. O interior fica mais pobre e o litoral não tem dinheiro suficiente para as infra-estruturas necessárias para acolher tanta gente.
A necessidade de revitalizar o interior é um tema recorrente no discurso político.
Já se fizeram diagnósticos e apresentaram-se muitas soluções. Mas a batalha tem sido perdida. O que está a falhar? Viu o exemplo do Tribunal Constitucional ou do Infarmed? Por que é que todos os serviços da Administração Central têm de estar em Lisboa? Hoje, as comunicações são facílimas. Pasmo com essa concentração. Claro que a situação dos funcionários tem de ser acautelada e isso é possível com um programa de descentralização a 15 ou 20 anos. Funcionários que estão perto da reforma não estarão dispostos a mudar a sua vida, mas quem tem 20 ou 30 pode fazê-lo. Seria até uma forma de regenerar a Administração Pública, que está débil. Quem entrasse sabia que, mais tarde ou mais cedo, haveria essa reconversão, que teria de ser acompanhada de apoios financeiros. As câmaras adorariam essa descentralização, porque contribuiria para aumentar o nível de vida das suas terras, a massa crítica e incrementar a actividade económica. Mas isto exige uma visão de médio prazo.
Ficou surpreendido com a oposição dos juízes do Tribunal Constitucional à proposta do PDS para a transferência deste órgão para Coimbra?
Fiquei, sobretudo quando usaram o argumento do ‘prestígio’. Andaram muito mal os senhores juízes a fazer uma separação entre ‘o nós e os provincianos’. Não era essa a intenção, mas estava subjacente na posição que tomaram.
Um homem do Norte, regionalista convicto
Natural de São Mamede de Infesta, Porto, José Silva Peneda, de 71 anos, é formado em Economia e diplomado em Administração do Desenvolvimento.