Despediu-se dos concertos esta terça-feira, com um último espectáculo no Coliseu dos Recreios, em Lisboa. A que se deveu esta decisão?
Acho que as pessoas devem sair enquanto têm a voz no sítio e, sobretudo, com a cabeça no sítio, para não fazerem disparates. Senti aos 84 anos, e depois de 65 deste meu jeito e forma de cantar, de viver e de estar, que era tempo suficiente para deixar talvez um perfume levezinho, um cheirinho simpático, uma imagem agradável e não uma coisa que as pessoas pudessem dizer ‘ela já devia ter acabado e ainda está a cantar’. Tenho um grande medo do ridículo, sempre tive[LER_MAIS]. E sempre pedi a quem está à minha volta, ao meu professor de voz, Luís Madureira, a quem agradeço, às minhas amigas Fátima Bernardo e Adelaide Figueiredo, que me aturam há mais de 30 anos por variadíssimos sítios do mundo – e mesmo neste País, que eu devo ter cantado em tudo o que era sítio, pequeno, grande, aldeia, em cima do poço- sempre pedi que quando achassem que era hora de acabar, que mo dissessem. Não foi preciso que isso acontecesse, porque eu penso no futuro e quero viver com calma, com tranquilidade, com serenidade, sem ter de ir ao cabeleireiro dia sim dia não, sem ter de pensar que o creme acabou, que o batom não é aquele, que a unha está mal, ai meu Deus o que é que eu visto, ai meu Deus o que é que calço. Isto durante uma vida inteira, embora tenha sido extraordinária, notável, brilhante, maravilhosa. Com períodos menos bons evidentemente, como todos nós na nossa vida, mas uma vida cheia. E eu tenho uma saudade lavada. Não tenho aquela saudade de chorar aquilo que já não posso fazer ou de olhar para a minha cara que não tinha rugas nenhumas e que agora é um mapa. Não fico nada infeliz com isso. Acho que tenho a sorte de ter uma vida boa, uma família extraordinária, amigos brilhantes – não muitos, uns cinco ou seis, mas que chegam – e este País trata-me muito bem. Este meu povo têm-me tratado maravilhosamente bem. E ficou demonstrado pelo facto de o Coliseu ter esgotado numa manhã. Eu própria abri a boca de espanto.
O que lhe teria dito Varela Silva?
Que já devia ter acabado há muito tempo.
Quem é Simone de Oliveira depois deste derradeiro espectáculo?
A mesma. Nós estivemos em confinamento muito tempo e eu há dois ou três anos que não fazia espectáculos. Portanto, estou muito habituada a estar sozinha. Aliás, vivo sozinha desde que o Varela morreu, há 26 anos. E é a mesma casa, onde moro há 57 anos. É uma casa que gosto muito, que comprei com o dinheiro das minhas cantigas, que tem a minha alma lá dentro. Tem risos, gargalhadas, Natais, aniversários, tem os meus netos mais velhos e miúdos a brincar com o Varela. Tudo isto faz desta casa um lugar muito especial. Muito meu. Embora eu mantenha também uma relação muito extraordinária com a casa que era dos meus pais, a que eu chamo ‘o meu casarão’, onde eu costumo ir jantar com a minha família. Entrei naquela casa pela primeira vez quando tinha 12 anos. Hoje tenho 84 e continuo a subir aquelas escadas. Tenho saúde, tenho o suficiente para viver. Nunca fui rica, às vezes até fui um bocadinho pobrezinha, ‘do ai ai ai, como é que eu faço?’. Nunca tive a mania de riquezas. Não tenho quintas, não tenho moinhos, não tenho coisas no Alentejo nem no Algarve. Tenho esta casa e não é mau.
Sente-se preparada para este novo eu?
Sim, sim, sim. Gosto imenso de fazer renda, gosto de ouvir concertos na televisão. Hoje, infelizmente, já não tenho olhos para bordar a ponto cruz. Habituei-me a estar sozinha há muitos anos. Quando a pandemia veio eu já estava em casa. Percebo que foi uma coisa patética para o País e acredito que, para as pessoas com filhos pequenos, tenha sido uma verdadeira dor de cabeça. Nem sei como foram capazes de resolver da melhor maneira. E há pessoas que tiveram Covid-19 e que têm grandes sequelas. Eu não tive. Como costumo dizer, estou vacinada contra tudo, até contra mim.
Ao cabo de 65 anos de carreira, o que ficou por cantar?
Eu cantei quase tudo o que gostava de ter cantado, sinceramente. Mesmo as canções francesas, as canções italianas…. Eu cantei Piaf, Aznavour, Shirley Bassey, Makeba…. Teria de ir lá buscar atrás qualquer coisa, mas muito rebuscado. Não vale a pena. Aconteceu o que aconteceu e não aconteceu o que não aconteceu. Tive a sorte de não ter tido grandes fracassos. A não ser aquela altura em que perdi a voz. Mas foi uma coisa física, voz mal colocada e cordas vocais estragadas. Depois aparece outra voz, felizmente. E ainda bem que perdi a outra. Porque se não nem teria chegado até aqui. Aliás, hoje quando me ouço com a minha outra voz, perguntou-me ‘por que é que não mandaram calar a mulher?’. Não consigo ouvir. Aliás, não me ouço. Não ponho discos meus.
Arrependimentos, tem algum?
Não tenho arrependimento nenhum. Fiz revista, fiz comédia, trabalhei em tudo o que era teatro no País, também em Angola, Moçambique, no Brasil, na Argentina, em França. Tive a honra de cantar no Olympia a convite da Amália. Conheci bastante bem essa senhora, a quem devo algumas gentilezas. Há dois sinónimos de solidão que eu conheço: Amália Rodrigues e José Carlos Ary dos Santos. Eu e o José Carlos tivemos uma amizade profunda, boa, bonita, nunca tivemos nenhum diferendo de ordem política. Ele costumava dizer ‘ó mulher, tu és mais comunista do que eu’.
Mulher de causas, sem rodeios, despertou mais ódios ou paixões?
Houve uma grande fase da raiva. Sobretudo das mulheres. Depois de ‘quem faz um filho, fá-lo por gosto’ [letra da Desfolhada Portuguesa], penso que foi uma pedrada no charco. Houve pessoas que adoraram, houve pessoas que odiaram. Acontece que foi uma frase que ficou até hoje. Eu tive os meus filhos por gosto, porque amei o pai dos meus filhos – ele partiu há muito pouco tempo – e não me arrependo de nada. Talvez, em consciência, tivesse limado certas coisas em relação ao meu pai e à minha mãe. Porque lhes foi difícil ter esta filha, fora do contexto. Ter uma filha que aos 19 anos foge de casa e diz disto eu não quero, quando outras mulheres ficavam [no casamento]. Portanto, tive a sorte de ter uns pais extraordinários que aceitaram, compreenderam, não criticaram e ajudaram. Isso não há nada que pague. Tive uma mãe muito serena, cuja grande frase era ‘parece impossível’.
A liberdade de hoje é a liberdade pela qual sempre lutou?
Há liberdade, mas ainda há muitas coisas escondidas atrás das portas. Por conveniência de ordens várias. Mas há, de facto, uma liberdade que em 1969 ou 1970 não havia. Penso que começa a haver algum equilíbrio a seguir ao 25 de Abril. Nos dois anos a seguir ao 25 de Abril foi a grande rebaldaria. Toda a gente podia fazer tudo. Depois, entrámos num clima de um certo equilíbrio. Para mim, o meu espaço acaba quando começa o do outro. Toda a vida tive por hábito respeitar o espaço do outro. Se entro na casa do meu filho, peço licença. Não é para ser boazinha. É instintivo, é meu. Quando o meu pai entrava, nós levantávamo-nos. Não era por obrigação, era por respeito. Porque era um homem extraordinário, brilhante. Há coisas que nos ficaram. Mesmo vivendo entre Luxemburgo, Berlim, Paris, temos um nó muito familiar. Para mim, a família é um nó portentoso.
E as mulheres conquistaram tudo aquilo que lhes é devido?
Conquistámos muita coisa. E este novo Governo colocou mais mulheres a governar, o que eu acho extraordinário. Estamos a conseguir muita coisa e ainda chegaremos mais longe. Quando eu estava no liceu, se as mulheres queriam ser médicas era uma vergonha. Ficavam como professoras do colégio, do liceu. Uma médica? Nem pensar! Receber as senhoras e os senhores todos nus? Não! Com 84 anos, passei por isso tudo. Havia uma vizinha da minha mãe, que às três ou quatro da manhã, quando eu vinha de carro sozinha, durante anos, levantava a cortina para ver o que eu fazia. Até ao dia que lhe fiz um grande manguito. Se os meus pais iam de férias com os meus filhos e eu ficava em casa sozinha, a senhora contava os passos que eu dava no corredor para saber se eu tinha alguém em casa. É preciso ser burra. Eu tinha carro, eu tinha dinheiro, não era com certeza para casa dos meus pais que eu ia levar alguém. Havia hotéis e eu tinha dinheiro para isso. Eu tinha liberdade. Eram ataques de burrice. E o espantoso é que grande parte das pessoas dessa época fazia tudo atrás da cortina. O que fiz foi à frente da cortina. E isso chocou muitas pessoas. Mas não estou nada arrependida.
As televisões e as rádios estão repletas de estrelas relâmpago. Esta pressa em aparecer deixa espaço para trabalhos de qualidade?
Nós temos bons actores, bons realizadores, muitos bons cantores, muitos bons músicos. Não vamos agora dizer que não temos, porque temos. Não haja agora a veleidade de dizer eu é que cantava bem, que eu é que sabia tudo. É mentira. Nós temos a Mariza, o FF, o Diogo Piçarra, o Camané, a Carminho… Caramba, não fiquem só na Amália. É evidente que tivemos a Amália e que não haverá outra. Isso é outra história, ponto final e parágrafo. Mas temos guitarristas extraordinários. Eu nunca perco o programa The Voice e vejo gente a cantar maravilhosamente bem. Agora pergunto, e vão cantar onde neste País? A rádio passa muito pouca música portuguesa, quando havia uma lei que dizia ser obrigatório passar uma percentagem de música portuguesa. Coisa que nunca foi cumprida. Que eu saiba. Eu também ouço muito pouca rádio. Sou ‘fanzérrima’ de televisão e quando ouço rádio é sempre numa estação que dê música que eu gosto. E acabou-se. Não tenho paciência para conversas na rádio. Se eu fosse de manhã para o trabalho a ouvir aquelas tretas batia com o carro no primeiro candeeiro. Eu percebo que é o trabalho que têm de fazer e é bem-feito. Mas eu não teria paciência, jamais.
Muitos artistas mais velhos reclamam falta de oportunidades de trabalho. O que diz isto sobre a nossa sociedade?
Nós somos uma população de gente com idade. E tenho impressão de que as pessoas com idade têm o mesmo direito do que as outras, desde que sejam capazes, que estejam lúcidas, que tenham vozes e que cantem. Eu percebo que a gente mais nova tem mais audiência, tem mais público. Mas, desculpem lá, os velhos fazem muita falta. Os velhos estão cá, existem, muitas vezes lúcidos e com vontade de trabalhar. E vê-se nas telenovelas, onde há gente a representar com 60 e tal, com 70 anos. Há papéis para toda a gente. Nas histórias não há só filhos, primos e irmãos. Também há pais mais velhos, avós e bisavós. Tudo isso faz parte da nossa vida. Porque se não houver um ontem, não há amanhã. Sem ontem não há futuro. Eu gosto é de olhar para o futuro. Vamos olhar para a frente, vamos atravessar outra vez o mar…. nem que seja para ir até às Berlengas.
Pensa na sua finitude?
Não penso nada na minha finitude. Adoro viver. Desde que esteja lúcida. Mas ligada às máquinas, não.
E depois do fim? Quem estará à sua espera?
Acredito muito no para lá. Acreditei sempre. Acho que nós somos energia. E que continuamos de uma forma qualquer. Acredito profundamente nisso e que vou encontrar muitos amigos. E o meu pai, a minha mãe, o Varela, os meus avós.
Simone de Oliveira nasceu em Lisboa há 84 anos. Casou aos 19, mas, vítima de violência doméstica, rapidamente acabou por sair de casa. Dedicou-se à música, quando o País pouco permitia à mulher, menos ainda no que respeitava à cultura. Em 1969 venceu o Festival RTP da Canção com a música mais icónica da sua carreira, a Desfolhada Portuguesa, da autoria de José Carlos Ary dos Santos, ousando cantar, em plena ditadura, “quem faz um filho, fá-lo por gosto”. Em 1965, tinha vencido o mesmo festival com Sol de Inverno. Simone de Oliveira fez também jornalismo, teatro, cinema e televisão. Depois de 65 anos de carreira, pisando palcos em inúmeros países, deu esta terça-feira o seu concerto de despedida, Sim, sou eu… Simone, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa.