No dia em que escrevo este comentário, vinte e quatro mulheres foram assassinadas ao longo deste ano, em Portugal, pelas bestas humanas que escolheram para seus maridos, companheiros, pais ou tão-somente supostos cuidadores dos seus filhos.
Provavelmente aquando desta edição o número terá já aumentado. Todos conhecemos, pelo menos, uma história em que a lei que deveria proteger a vítima a fragiliza ainda mais, de juízes que impõem decisões onde a vítima fica à mercê do verdugo, forças da autoridade que não agem em tempo próprio, entidades que agem de modo pouco célere, teóricos que defendem o indefensável, família e amigos que desvalorizam as queixas e evitam comprometer-se na solução.
Contudo não hesito em acusar-nos a quase todos de sermos cúmplices desta barbárie. Antes de uma coisa acontecer há sempre um pensamento sobre a coisa. Uma matriz mental não tangível e por isso mesmo difícil de provar, uma atitude do pensar que condiciona as nossas respostas.
Hoje, quase todos nós, homens e mulheres também, pactuamos com um pensamento cuja percussão perpetua os maus-tratos infligidos às mulheres. Em nome de coisa nenhuma as mulheres são o mote de venda de qualquer produto. A mulher-objeto, a mulher-coisa, entranos pelos écrans de televisão em qualquer momento.
Para que compremos um detergente, um sabonete, uma peça de roupa, umas férias, um carro, um medicamento até. A mulher-exposta é moeda corrente de troca em qualquer revista cor-de-rosa, nas páginas de alguns jornais.
A mulher-só-corpo é banalizada, usada, [LER_MAIS] abusada, maltratada por cada vez que aceitamos consumir essas mesmas imagens sem pudor ou sentido crítico.
Mais que uma entidade, uma pessoa de direito, a imagem da mulher é usada e abusada no seu esquema corporal. Fingimos que não vemos. Consumimos a imagem da mulher sôfregos de uma excitação flácida.
Pior ainda, algumas mulheres caem também neste logro e perpetuam-no. Cordeiros que se oferecem voluntariamente ao sacrifício. Aos homens, por oposição, oferecem-lhes uma panóplia de argumentos de pseudovirilidade. Conquistadores, seres possuídos de força colossal, dominadores quase sempre.
Sei que estou a pregar no deserto, mas urge um debate sério sobre a construção do pensamento que antecede cada ato da vergonhosa sujeição da mulher face ao homem.
Percurso da teologia à ciência, da antropologia ao poder dos media, de cada pressuposto do pensamento para outro que o complemente ou mesmo oponha. “Cuida-te, quando fazes chorar uma mulher, pois Deus conta as suas lágrimas.
A mulher foi feita da costela do homem, não dos pés para ser pisada, nem da cabeça para ser superior, mas sim do lado para ser igual… debaixo do braço para ser protegida e do coração para ser amada!”.
Creio ser do Talmude este trecho que guardo como marcador de livros e que hoje me parece oportuno citar.
Que 2019 nos traga um ano de respeito pela Mulher e por cada Mulher.
*Psicólogo clínico
Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990