Na tradição do tango argentino, o homem convida a mulher através de mirada y cabeceo – um olhar seguido de subtil aceno com a cabeça. Joana Ramirez, que dá aulas em Leiria, traz este e outros códigos de Lisboa (onde nasceu) e de Buenos Aires, onde viveu (e se redescobriu) durante oito anos.
“Eu nunca tinha dançado, não gostava de dançar. Fui assistir e de repente fez-se um clique e eu senti ‘é isto, é isto que eu quero para a minha vida’. Logo, como se fosse alguma coisa que já existisse dentro de mim e que estava adormecida”.
O momento revelação aconteceu ainda em Portugal, durante a licenciatura em Filosofia. Alguns meses depois, com 21 anos de idade, aterrou na América Latina, sozinha. “Não conhecia lá ninguém. Fui à aventura”, conta ao JORNAL DE LEIRIA. “Acabei por formar a minha personalidade, em Buenos Aires, com o tango”. E conclui: “Faz parte daquilo que sou, caracteriza-me”.
As aulas acontecem nos Marrazes, na sede do Rancho da Região de Leiria. Na noite em que o JORNAL DE LEIRIA marca presença há seis duplas a percorrer o salão ao som da orquestra de Osvaldo Pugliese e o desenho que une homem e mulher é imediatamente reconhecível.
“Há quem diga que o tango é a dança do abraço”, comenta Joana Ramirez. “O abraço é característico porque é um abraço real. Não é uma forma, uma posição. E os corpos têm um contacto no torso que permite que o homem comunique à mulher”.
No próximo dia 13 de Maio, decorre um workshop e uma apresentação pública, no Sport Operário Marinhense. Além das aulas, iniciadas no final do ano passado, em Leiria também já se realizaram milongas, ou seja, bailes sociais onde os participantes se encontram especificamente para dançar o tango argentino.
“Vieram pessoas de Aveiro, Figueira da Foz, Coimbra, Lisboa, Santarém”. O normal. “Pelo mundo inteiro” há “gente viciada em tango” que viaja “de propósito para outros países para festivais, para maratonas, para ter aulas”, diz a professora agora a trabalhar em Leiria. “Qualquer pessoa, qualquer idade, qualquer corpo” têm lugar no tango. “É uma dança social, não há requisitos”, salienta Joana Ramirez. “Um rapaz de 20 anos pode dançar com uma senhora de 80 e uma senhora muito gorda pode dançar com um senhor muito magrinho”. No entanto, é uma dança “muito complexa” e “difícil de aprender” e “para se dançar bem, leva muito tempo”.
“As milongas existem por todo o mundo, muito mais do que as pessoas pensam”, assinala.
Hoje é comum dançar-se até de sapatilhas e t-shirt, mas, de acordo com a convenção, o fato e o vestido com racha são próprios do baile social. Importante, mesmo, é o calçado, específico para tango: permite deslizar sobre o solo ou, quando necessário, agarrar a pisada.
A expressão mirada y cabeceo significa que não se convida à mesa, pelo contrário, os pares encontram-se na pista. Se a mulher retribui o olhar, em vez de virar a cara, indica que aceita a proposta. Circula-se sempre ao redor do centro no sentido inverso aos ponteiros do relógio, caminha-se muito (um dos movimentos considerados mais difíceis) e é costume não dançar mais do que quatro tangos consecutivos com o mesmo parceiro, a não ser que exista ligação sentimental ou artística.
“Eu pretendo manter uma linha mais tradicional, que acho que é a essência do tango e que não se deve perder”, realça Joana Ramirez. “O tango argentino é totalmente diferente de todas as outras danças” e “muito diferente do tango que as pessoas estão mais habituadas aqui na Europa a ver”, que é “o tango de salão”, explica. “É tudo diferente: o abraço, a postura, os passos, a conexão, a comunicação, tudo, tudo, não tem mesmo nada a ver”.
Na conversa com o JORNAL DE LEIRIA, Joana Ramirez – o apelido, agora nome artístico, deve-se, por engano, ao autor dos cartazes de apresentações ao vivo em Buenos Aires – lembra que o tango argentino remonta ao século XIX e começou com os emigrantes europeus, tem raízes nos bordéis, chegou a ser proibido, atingiu o expoente máximo no canto com Carlos Gardel, e, através de quatro orquestras principais, atravessou o período de ouro nos anos 40 do século XX.
“Tem muitas vertentes: música, poesia, dança. É uma cultura”. E é machista, à luz de 2023? “Independentemente de ser o homem a liderar a dança, não é machista. Até porque, o homem tem muito mais responsabilidade, e sem a mulher não existe a dança”.
São duas partes activas em comunicação e não existem papéis submissos. “O homem escuta a mulher e dança para a mulher”, assegura. “Qualquer milongueiro em Buenos Aires vai dizer que dança para a mulher, não para ele”. O foco está em ouvir a música, interpretá-la e dialogar (sem palavras) com o companheiro. “É uma intimidade de partilha através do abraço em que não há contacto da cintura para baixo, ao contrário de algumas outras danças”.
Na sede do Rancho da Região de Leiria, aproximadamente duas dezenas de pessoas, entre os 27 e os 74 anos de idade, frequentam as aulas de Joana Ramirez, em vários níveis.
“É importante aprender-se estruturas para depois romper essas estruturas”, adianta a professora. “Aprendem-se passos mas não é para dançar passos. Dançar é outra coisa”. Ou seja: “a improvisação é a base do tango social porque ninguém sabe o que vai acontecer desde o momento em que vão os dois para a pista e se abraçam”.