Ler + todas as palavras do mundo é o lema do Plano Nacional de Leitura (PNL) 2027 que começa agora a ser implementado. Que mensagem se quer passar com esse lema?
Ler é um modo de estar na vida. E ler todas as palavras do mundo porque o mundo se expressa em palavras e é preciso defender a palavra porque esta pode estar ameaçada. Mas tem também um sentido para além disso: ler todas as palavras que falam do próprio mundo, seja a linguagem científica sejam as linguagens artística e musical. É o ser capaz de ler o mundo e as palavras e ter consciência do valor das palavras e não deixar que elas morram em nome de qualquer ilusão sobre o seu valor.
O novo PNL vai também apostar na escrita?
Vai. Queremos reforçar a ideia de que a leitura e a escrita estão muito associadas e que uso e o treino de uma favorece o uso e o treino de outra. O digital está hoje nas nossas vidas e envolve muito a escrita. Acredito que o digital pode ajudar a valorizar a leitura e a escrita. Precisamos de saber escrever, porque estamos sempre a escrever. Perceber a necessidade, a funcionalidade e o valor simbólico da escrita ajuda-nos à leitura e vice-versa.
O digital é uma ameaça ou uma oportunidade para a leitura?
Ler é ler. Por razões sociais, pessoais e profissionais, as leituras são hoje de natureza muita diversa e em diferentes suportes e que, uma vezes, favorecem mais umas leituras e às vezes favorecem leituras de outra natureza. O digital é uma coisa fantástica. A informação a que temos acesso e o modo rápido como podemos lá chegar… É um mundo fabuloso, ao qual acedemos para as coisas mais práticas da vida, desde a informação sobre um medicamento, o modo de pentear o cabelo ou uma planta, a consulta de artigo científico, de um livro de ficção ou de livros para brincar com as nossas crianças. Isto é amigo da leitura, mas também pode ser inimigo.
Em que circunstâncias?
Será inimigo se eu excluir formas mais elaboradas de ler, se ficar tomado pelos aspectos mais simples e se confundir entretenimento e voragem de passar de um sítio para o outro com leitura cuidada, que inclui verificação de fontes e capacidade de saber distinguir o trigo do joio. A única maneira de nos defendermos e de nos fazermos compreender num mundo de economia do conhecimento é ler, ler mais, ler bem, ler com fluência. Resumindo: ler. À partida, não importa o suporte, mas temos de estar avisados dos limites ou dos aspectos aditivos de algumas tecnologias, que não são apenas deste tempo. As tecnologias de agora, são perigosas por causa da sua rapidez, do aditivo que representa a permanente conectividade e da ilusão que dão sobre o saber, porque, em vez de nos tornar proprietários de conhecimento, podem fazer-nos escravos da falsa ilusão e democracia do conhecimento.
O livro em papel vai sobreviver ao digital?
Ninguém sabe. Para já, sobrevive. É como dizia Umberco Eco sobre a colher: 'enquanto provar que é um bom utensílio para comer, a colher não morre'. Acredito que com o livro será o mesmo, um pouco como acontece com a imagem, o cinema ou a fotografia. As pessoas mais conscientes do problemas devem alertar para os perigos de afastarmos da nossa vida elementos de desenvolvimento que a História vem provando serem instrumentos muito úteis na inteligência global dos homens. Há meia dúzia de anos, dizia-se que, com os ebook, deixaria de haver livros em papel. Hoje as estatísticas mostram que muita leitura se faz no digital, mas que também muita leitura, nomeadamente de ficção, continua a fazer-se em papel, sem prejuízo de se usarem outros suportes.
Ainda é do 'clube do papel'?
Sou, sobretudo quando se trata de ficção. Gosto muito de livros e do seu formato em papel e porque têm muita representação simbólica para mim. Sou o que sou por força dos livros e do modo como os li e do suporte em que os li e quero preservar isso no meu cérebro e na minha sensibilidade. Há muitos aspectos que ainda não dominamos para poder responder se o livro em papel vai sobreviver ao digital. Ao longo dos séculos, o Homem tem vindo a arranjar periféricos que aumentam o seu próprio corpo, a sua capacidade de percepção e de sentir. Mas há ainda alguma coisa que pertence aos homens: a imaginação, a linguagem. E a liberdade que vem associada à leitura sozinho, adaptada ao meu gosto, ao que escolho e sem algoritmos a fazer com que eu goste disto ou daquilo.
Tem trabalhado muito com crianças e jovens. A ideia de que este é um público que não gosta de ler corresponde à verdade?
A experiência mostra que há mais pessoas e mais miúdos a ler. Agora, o modo de ler alterou-se bastante. Se cingirmos o ler ao livro em papel e ao que isso representa – o ficar isolado a ler, ter aquele objecto comigo e não o misturar com outros gadgets – e não tomarmos como leitura o que vem nas redes sociais e nas informações que retiro do computador e dos smartphones para estudar, então lê-se menos. Vivemos numa sociedade do entretenimento, na qual os jovens tendem a valorizar aquilo que aparece como muito próprio do tempo deles e que é mais tribal, ou seja, o que os amigos fazem, mas também aquilo que vêem os pais fazer.
Além de continuar a aposta no aumento do níveis de literacia dos mais jovens, o PNL quer “levar a leitura a outras esferas da sociedade”. Ter pais que gostem de ler é meio caminho para que os filhos também gostem?
[LER_MAIS] A associação entre os graus de literacia das famílias e das crianças é indesmentível. E em Portugal temos uma sociedade que ainda não atingiu patamares elevados de escolaridade formal e mesmo a não formal não é muito validada. Ainda temos muitas famílias com poucos recursos e poucos hábitos culturais ou em que estes estão limitados pelos seus horizontes e pelo seu dinheiro. E isso tem influência nas crianças. É essencial a aposta nas famílias, na vontade em que valorizem o conhecimento e as aprendizagens e percebam que os interesses culturais se reflectem nos seus filhos. É por isso que dizemos que o PNL é uma política pública de leitura, equiparável, por exemplo, a políticas públicas que existem para a vacinação, protecção do ambiente, a sustentabilidade e a prevenção de comportamentos de risco. Uma das apostas do PNL na área das famílias é ajudar a melhorar as competências de leitura dos adultos, incluindo a alfabetização. Em Portugal ainda há muita gente que não sabe ler nem escrever e que, para assinar, põe a impressão digital. Isto numa sociedade onde já se assina digitalmente.
Como é que se põe uma criança ou um jovem a ler um livro?
Não existe receita, mas há práticas que ajudam, com a escola e os meios de comunicação social a poderem ter um papel importante, criando, por exemplo, alguns mecanismos lúdicos e prémios, valorizando os livros e as revistas. Esse esforço implica também a junção de práticas como o PNL, as bibliotecas públicas e escolares, eventos culturais onde a música esteja associada à palavra, valorizando as letras e os letristas das canções, ou manifestações de massa que não ostracizem o livro e a leitura. E dar o exemplo. Mais importante do que dizermos 'vai ler', é lermos na nossa vida quotidiana e trocar ideias sobre livros com eles. O que acontece na nossa sociedade é que somos fracos leitores. Ler não está na moda e não se nasce leitor. Precisamos de aprender, de praticar, de treinar e isso exige esforço. Numa sociedade que desvaloriza o esforço, em que tudo parece estar à distância de um clique e pronto a consumir, não é fácil.
Fez parte do grupo de trabalho responsável pela elaboração do novo perfil do aluno, um perfil que está muito focado nas competências sociais e nos valores.
A questão está em pensarmos se a escola forma só para se ser intelectualmente estimulado ou se isso implica outros estímulos e alertas para a vida, que envolve valores, atitudes, conhecimentos. O perfil quis focar isso, o que não está longe daquilo que são as recomendações da OCDE e a prática de muitos países que nos inspiraram, como a Austrália ou a Nova Zelândia, que têm esta visão de que a escola não instruí só no sentido cognitivo e metacognitivo e que as competências que a escola tem de convocar para processar aprendizagens são de natureza distinta e envolvem atitudes, valores e práticas distintas. Hoje não se fala apenas em inteligência do QI, mas de outras inteligências e da responsabilidade que umas têm nas outras. Ou seja, como é que uma inteligência emocional é convocada para a dita inteligência intelectual e vice-versa.
O perfil enumera um conjunto de competências-chave. Quais considera as mais importantes?
É uma pergunta que não tem resposta, porque elas não têm hierarquia. Para se perceber certa coisa, tanto se precisa do braço como do cérebro. É evidente que, para umas é preciso mais um, para outras mais o outro. Mas as competências têm de ser todas desenvolvidas ao longo da escolaridade. Porventura, se algum aspecto podemos expor hierarquicamente, do meu ponto de vista, e porque são pilares fundantes, é a leitura, a escrita, os números e o digital. Se não tivermos estas bases, estamos diminuídos na nossa cidadania, na nossa capacidade de cidadão. Essas competências são condição para se desenvolver a linguagem, o uso do corpo ou a estética.
Professora no Liceu
“Tenho as melhores memórias de Leiria”
Que memórias guarda do tempo em que foi professora no Liceu de Leiria?
Tenho as melhores memórias de Leiria, por várias razões. Foi entre 1973 e 1980. Quando comecei, tinha 20 anos e ter 20 anos é maravilhoso. Depois, foi a minha primeira experiência profissional e caí num liceu com uma categoria de professores fora de série. Tive colegas que não só eram pessoas muito boas, como eram intelectualmente muito capazes. Fiz grandes amigos. Refiro, a título simbólico, Amélia Pinto Pais ou Adelaide Pinho. Foi um período de grande crescimento pessoal. Vivi aí o PREC [Período Revolucionário em Curso], um período de intensa vida política e partidária. Como esquerdista, isso puxou por mim. Depois, Leiria é uma bela terra, com uns arredores maravilhosos. São Pedro de Moel é minha praia de eleição.
Que disciplinas leccionava?
Fui professora de Filosofia mas fiquei também com umas horas para trabalhar na biblioteca. A minha actividade ligada às bibliotecas, com mais de 40 anos, começou como simples operária na biblioteca do Liceu de Leiria. Foi aí que comecei a valorizar a existência de bibliotecas na escola. Como podia ensinar Filosofia e não ter os livros que recomendava aos alunos para lerem? O Liceu de Leiria já tinha uma biblioteca maravilhosa. Depois dessa experiência deixei e fui para o Ministério da Cultura.
O que foi fazer?
Comecei por trabalhar em pequenas bibliotecas de associações, transitando depois para as bibliotecas públicas. Esse foi o arranque da minha formação e estudo da literatura e sobre a importância social das bibliotecas. Mais tarde, veio o desafio para as bibliotecas escolares, que aceitei contra a opinião de muitos que me diziam que o Ministério de Educação não ligava nada a essa área. Acredito genuinamente que, se há lugares onde se fazem e desfazem leitores e que contribuem para a valorização social da leitura, são as bibliotecas escolares, às quais dei muito.
Qual o primeiro livro que a marcou?
Não me lembro. Tive uma espécie de tio-avó, que viveu no Brasil e que tinha um sotaque muito doce e que me iniciou no gosto de ler em voz alta. Isso marcou a minha aproximação aos livros. Não me marcou um livro. Marcou-me a leitura.
Uma vida em defesa da leitura
Diz que foi em Leiria, como “simples operária” na biblioteca do Liceu, onde também leccionou Filosofia, que começou a sua actividade ligada às bibliotecas, que se prolongou por mais de 40 anos.
Licenciada em Filosofia, Teresa Calçada foi técnica do Instituto Português do Livro e, mais tarde, vice-presidente do Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro. Esteve na definição das bases e na execução da política nacional da leitura pública, que conduziu à criação da Rede de Bibliotecas Municipais. Foi também o rosto da implementação do Programa de Rede de Bibliotecas Escolares, coordenando essa rede até 2013.
Actual comissária para o Plano Nacional de Leitura, fez parte do grupo de trabalho que elaborou o novo perfil do aluno, que entrou em vigor este ano lectivo. Integra ainda o projecto Voluntários da Leitura.