Era uma vez um lugar com um pequeno inferno e um
pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado
para o outro, e encontravam-nos, a eles, ao inferno e
ao paraíso, e tornavam-nos como seus, e eles eram
seus de verdade. (…) Para diante, para diante. Não se
pode parar. Enforquem-nos a esses malditos
banqueiros. Este vai ter trinta e cinco andares, será o
mais alto da cidade. Por pouco tempo, julgo eu.
Como? Sim vão construir um com trinta e seis, ali à
frente. (…) E depois? Bem, lá construíram o prédio
com trinta e seis andares, e o outro ficou em segundo
lugar. Isto é o trabalho do homem: pedra sobre pedra.
É belo. Vamos amar isto? Vamos, é humano, é do homem. (…)
Extrato do conto Lugar Lugares, de Helberto Helder, in Os Passos em Volta
Vivo e construo num lugar com pequenos infernos e pequenos paraísos onde o presente e o futuro se apresentam como passados impolutos e onde muitos dos homens e das mulheres, com medo de assumirem o presente, assumem o passado como facto consumado.
Avaliar o passado, a acção humana quando com eles vivemos e trabalhamos, penso ser a única forma de poder fazer hoje. E sempre com uma perspectiva de futuro.
Como arquitecta, sou confrontada todos os dias com o passado, em particular nestes tempos de hoje. Hoje, muita da construção insere-se em tecidos urbanos consolidados, muitas vezes devolutos e em que construir para hoje é antes de mais construir com.
Recuperar, reconstruir, readaptar, ampliar e demolir são acções em simultâneo. Um mesmo edifício, muitas vezes resultado da anexação de pequenos edifícios e de muitas e diversas inserções urbanas obriga, desde logo, a uma escolha.
Escolha do que é de manter, escolha do que é [LER_MAIS] de demolir, escolha/definição do uso e da forma e da linguagem.
A linguagem entendida no seu sentido lato. Isto é, do que é em si mesmo e como se relaciona com o outro e com os outros.
A afirmação de uma linguagem com o outro, falo de artefactos urbanos, de edifícios, é uma linguagem que se revela muito similar a que utilizamos uns com os outros. Outros entendidos como seres humanos de várias gerações e contextos.
O vocabulário que usamos uns com os outros, velhas pessoas com novas pessoas, velhos edifícios com novos edifícios, alta pessoa com baixa pessoa, alto edifício com pequeno edifício, feia pessoa com bela pessoa, feio edifício com belo edifício, é do mesmo tipo.
Resulta sempre de pré-existências, do que são e do que somos. Esta(s) escolha(s) dependem também das condicionantes e servidões regulamentares aplicáveis.
A construção de um lugar, num lugar, é o resultado da complementaridade de todas as engrenagens.
O artefacto humano mais extraordinário é a cidade, obra de arte colectiva, participada, debatida, intuída…
Terei sempre a maior resiliência perante tudo o que negar a participação, o respeito pelo outro e pela diferença e em particular pela intolerância que se afirma pela ditadura do que está!
“É belo. Vamos amar isto? Vamos, é humano, é do homem.” Nem sempre!
*Arquitecta