É um trabalho de paciência… muita paciência. Com ajuda de um maçarico, José Joaquim Constantino, o último calafate da Nazaré, tenta curvar a madeira e levá-la para onde quer. Para facilitar o processo, as tábuas são, previamente, embebidas numa solução à base de óleo e gasóleo que ajuda a amaciá-las.
Depois, “é chegar-lhe o calor”, para lhe “dar o jeito” pretendido e “levar a madeira ao sítio certo”, explica o mestre, enquanto aproxima, mais uma vez, o maçarico da última tábua que colocou na Mimosa, uma das sete embarcações tradicionais da Nazaré que estão a ser restauradas no âmbito de um projecto de preservação deste património cultural promovido pela Câmara.
O objectivo mais imediato é recuperar os barcos e devolvê- los à exposição ao ar livre montada no areal, em frente ao centro cultural da vila (antiga lota) e junto à zona de secagem do peixe, numa parceria que envolve também o Museu Dr. Joaquim Manso.
O projecto contempla ainda a criação de um armazém no porto de abrigo, onde o trabalho de reparação possa ser feito à vista de turistas e até de jovens estudantes. A lógica, explica Walter Chicharro, presidente do Município, “é passar este conhecimento para as escolas e para o mundo”, valorizando um património que constitui “um activo que a Nazaré não pode perder”.
O autarca conta que o projecto começou a ser idealizado ainda no seu primeiro mandato, iniciado em 2013, após uma visita às oficinas da Câmara onde encontrou, “encostada a um canto”, uma barca salva-vidas.
De imediato, decidiu que aquele “não era o espaço” para a embarcação estar guardada. [LER_MAIS]E, “em poucos meses, se iniciou a exposição das embarcações, numa lógica de preservar e promover a nossa identidade, o nosso património cultural e o nosso carácter de gente do mar”, recorda Walter Chicharro, que acredita que a colocação dos barcos no areal contribuiu para que a “alma dos nazarenos se visse reforçada”.
Essa é também a convicção de Carla Maurício, bióloga “nascida e criada” na Nazaré que coordena o Gabinete de Pescas e Praia da Câmara e que é responsável pelo projecto Embarcações Tradicionais – Uma representação da identidade nazarena, entretanto objecto de uma candidatura a fundos comunitários.
“É extremamente importante para a nossa comunidade e para o Município este reconhecimento da importância do património náutico, materializado nas embarcações tradicionais”, nota a técnica, considerando que, ao preservar e divulgar esta componente da cultura nazarena, se está também a reforçar o “sentido de pertença da comunidade”.
Um ofício iniciado aos 14 anos
José Joaquim Constantino tem sido uma peça fundamental no projecto. Das mãos calejadas e conhecedoras deste calafate – designação dada ao operário especializada pela calafetagem do barco, mas que na gíria é também sinónimo de carpinteiro naval – tem resultado o rejuvenescimento das embarcações tradicionais que já regressaram ao areal da Nazaré.
O calafate começou a aprender a arte aos 14 anos com o “mestre” António Luís Júnior, já falecido. Depois de cumprir o serviço militar, acabou por “ir à aventura”. Foi para o mar e, durante 34 anos, trabalhou em navios porta-contentores. No entanto, nunca se desprendeu da paixão pela recuperação naval. “O primeiro amor… sabe como é”, diz, entre risos, contando que, sempre que vinha de férias, regressava às oficinas para “matar o bichinho”.
Há cerca de um ano e meio, “uma feliz coincidência” levou José Joaquim de volta à actividade, em permanência, do restauro de embarcações. “Com a sua aposentação, pudemos captá-lo para o projecto. É extremamente difícil ter um técnico a fazer este trabalho. Ainda tentámos obter orçamentos em estaleiros, mas é difícil que venham fazer reparação no areal ou num espaço do Município”, refere Carla Maurício.
Pelas mãos de José Joaquim, “o único calafate no activo na Nazaré”, já passaram cinco das sete embarcações que serão restauradas no âmbito do projecto. De momento, absorve-o a requalificação da barca Mimosa, que lhe chegou “muito combalida”. Quando, em Novembro, lhe começou a mexer, “a madeira estava a desfazer-se” e teve de ser toda substituída. “Por dentro, já falta pouco. Queria ver se no início do Verão estava em condições de ir para o areal”, adianta José Joaquim, que ainda tem à sua espera a salva-vidas Nossa Senhora dos Aflitos.
Depois, é tempo de iniciar os trabalhos de conservação nas embarcações já recuperadas, que, entretanto, começarão a ressentir-se da exposição ao sol, ao vento e à chuva. “Ficam pior do que se estivessem a trabalhar em pleno. Mas estou cá para ajudar. Tenho muito orgulho no nosso património. Devemos manter as tradições vivas”, defende o calafate, que lamenta não ter, por agora, a quem passar este saber.