A grávida em trabalho de parto que dizia não estar grávida, a assistência a uma mulher atingida a tiro pelo marido sob protecção da polícia, a chamada para um cadáver em decomposição, fazer um parto de gémeos que saíram de pés ou o drama de não conseguir reverter uma paragem cardiorrespiratória num recém-nascido são situações que marcam os médicos e enfermeiros da Viatura Médica de Emergência e Reanimação (VMER) de Leiria, do INEM, que há 25 anos salvam vidas na região.
O JORNAL DE LEIRIA acompanhou durante um dia as equipas da VMER, constituídas por um médico e um enfermeiro. A resposta a cada chamada é dada com a máxima rapidez, sem nunca comprometer a segurança dos tripulantes. Cada minuto conta.
Em alguns casos são apenas falsas emergências, que ocupam meios diferenciados que podem ficar indisponíveis para verdadeiras ocorrências de vida ou de morte. Como o caso do senhor alcoolizado, caído no chão da rua junto ao Banco das Artes em Leiria.
A informação passada ao Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) informava que a vítima queixava-se de uma dor no peito e no braço, que não conseguia mexer. Cerca de um minuto depois, a VMER estava no local.
Logo a seguir, os bombeiros Sapadores de Leiria juntaram-se à equipa e reconheceram a ‘vítima’, habitual ao fim do dia. “Então Baltazar, o que se passa?.” Explicaram que este é um caso social, que procura quase diariamente uma manta ou comida no hospital. Quem passa desconhece a situação e tenta ajudar. A jovem que chamou o 112 confessa que ficou assustada com as queixas do senhor. Mas há outras situações, como o accionamento para uma idosa acamada, que tinha estado internada e cujos sintomas já duravam há alguns dias.
A VMER correu até à freguesia de Amor, mas ao chegar percebeu que não se tratava de uma emergência. A senhora foi transportada para o Hospital de Santo André, onde foi triada com a pulseira verde (pouco urgente). Diferente foi o caso de uma mulher em paragem cardiorrespiratória em Abiul, no concelho de Pombal.
Sedeada ao lado do edifício da Medicina Legal do Hospital de Santo André, em Leiria, a distância até Pombal é considerável, sobretudo, para quem está entre a vida e a morte.
Ao volante da VMER, com a médica Márcia Pinto ao lado, o enfermeiro Paulo Figueiral acciona a sirene assim que sai do espaço hospitalar. Numa corrida contra o tempo, a chuva não impede uma velocidade que chega a atingir os 200 quilómetros na auto-estrada. A concentração de Paulo é máxima, enquanto Márcia faz contactos e segue atentamente o GPS, que de vez em quando emite um som dos desenhos animados Minion, para “desanuviar” o stress e apreensão durante a viagem.
À chegada já se encontravam elementos do Suporte Imediato de Vida e bombeiros do INEM. O filho da vítima já tinha realizado manobras de reanimação, mas sem sucesso. Uma mão cheia de operacionais investiram tudo para reverter a situação, sem desistirem até sentirem o pulso. Sabem que fizeram a diferença e ajudaram a manter viva uma pessoa, apesar da apreensão de temerem eventuais sequelas, devido ao tempo em que esteve em paragem.
Após estabilizarem a vítima, médica e enfermeiro da VMER acompanham-na na ambulância dos bombeiros na viagem até à urgência de Leiria, onde entrou directamente para a área vermelha. A vida mantém-se em risco. A VMER é trazida pelo bombeiro do INEM.
Noutra situação foi a médica de família da Unidade de Saúde Familiar Condestável, na Batalha, que pediu ajuda. Uma senhora estava com o batimento cardíaco demasiado elevado e irregular.
O enfermeiro António Costa acelerou com a médica Cláudia Antunes. O trânsito foi-se desviando como pôde para permitir a passagem da VMER. A ansiedade para chegar rápido não transparece na equipa, que procura manter sempre a calma em todas as situações. “É preciso chegar rápido, mas em segurança. Essa é uma das principais premissas”, afirma António Costa.
No entanto, as equipas admitem que por vezes arriscam um pouco mais, porque o seu foco é a vítima e sabem que um segundo pode fazer a diferença. Os veículos estão equipados com duplos amortecedores para garantir maior estabilidade ao veículo e felizmente, em Leiria, não há registo de acidentes graves.
A tranquilidade com que conversam com a doente, já na ambulância dos Bombeiros Voluntários da Batalha, é surpreendente. Não há qualquer vislumbre de ansiedade na equipa da VMER.
Após verificarem os sinais vitais, realizarem um electrocardiograma e de administrarem medicação para controlar os batimentos cardíacos, a senhora segue com a médica a bordo para a emergência das urgências de Leiria, para que sejam realizados novos exames. Depois de passarem toda a informação aos colegas, voltam para a base, pois é preciso estar disponível o mais rápido possível. “O nosso veículo está melhor equipado do que muitas urgências básicas”, assume a médica Ana Isabel.
Na viatura levam uma panóplia de medicamentos, desfibrilhador, monitor lifepak – sinais vitais, malas de trauma e para partos, ventilador, equipamento LUCAS (dispositivo mecânico de compressão torácica), frigorífico, entre outros consumíveis.
“É uma autêntica sala de emergência, uma unidade de cuidados intensivos no meio da rua. Somos um suporte avançado de vida e o hospital o tratamento definitivo”, reforça António Costa, ao sublinhar que a VMER é o “grau de maior diferenciação da emergência médica”.
Este enfermeiro acrescenta que trabalhar na emergência é saber que se pode fazer a diferença na vida de alguém. “Socorrer alguém e saber que ficou bem… não é só salvar a pessoa, mas também a família.”
Cátia Santos, coordenadora adjunta dos médicos da VMER, frisa que têm “um sentido de missão para oferecer o melhor possível à vítima”. Também Cláudia Antunes reconhece que a VMER tem um impacto imediato nas pessoas, embora lamente que muitas situações não sejam emergentes. “Há situações que não justificam a nossa presença. Mas é preferível pecar por excesso. Os algoritmos deveriam ser actualizados. Temos uma população idosa muito dependente e não há médicos nos cuidados de saúde primários”, aponta.
Este até foi um dia calmo, comparando com muitas situações insólitas e difíceis de digerir durante o serviço na VMER de Leiria, aquele que mais saídas tem em média (sete por dia). Há quem já tenha estado num tiroteio, com a vítima à frente, mas sem a poder socorrer por falta de condições de segurança da sua própria vida. Ou, um marido que baleou a esposa e só depois de a polícia chegar e de arma apontada ao agressor é que a equipa conseguiu prestar socorro.
Histórias de séries televisivas
Já foram chamados para um “corpo encontrado na mata” e depararem-se com um cadáver em decomposição, que nem permitia identificar o género. Cláudia Antunes também revela a situação caricata de uma mulher que estava em trabalho de parto, mas que insistia não estar grávida. A criança nasceu. Ou assistir um baleado no meio da mata, estabilizá-lo e quando colocado no veículo da polícia – o único com acesso ao local – este avariar.
Márcia já enfrentou um javali na estrada no meio do mato, a caminho da serra no concelho de Porto de Mós e João Paulo Carvalho recorda o socorro a uma grávida, quando a ambulância seguia na A1 quase virou, ficando com as duas rodas no ar. “De repente tinha a grávida no meu colo.” Para chegarem às vítimas, por vezes precisam ser criativos.
Percorrer matos intransitáveis com mala e equipamento às costas, subir a uma grua para chegar perto de uma vítima de acidente de trabalho ou fazer a extracção rápida de uma pessoa cujo veículo estava em chamas. “Não somos heróis, mas temos de tomar decisões muito rápidas.”
O mais difícil de enfrentar é o socorro a pessoas conhecidas ou a morte de alguém, sobretudo, de crianças, como sucedeu com Cláudia Antunes, que ainda hoje se questiona se outra pessoa conseguiria ter salvado um recém-nascido em paragem cardiorrespiratória. É duro, mas continuam a sair para salvar todas as vidas que conseguem, com o apoio do ‘hospital’ que levam na viatura.
Verificar o óbito em contextos de festa como no Natal ou decidir que não adianta fazer manobras de reanimação ou desistir delas, porque a situação é irreversível, é emocionalmente exigente para todos. João Paulo Carvalho é dos mais antigos na VMER.
O enfermeiro coordenador, que já foi ameaçado de morte, recorda as dificuldades de há 25 anos, sem GPS, direcção assistida ou telemóvel. “Tínhamos uma carta militar afixada na parede e deslocávamo-nos aos locais com um mapa à procura da rua x. Imagine-se o que era uma ocorrência no meio do nada, à noite, sem ninguém a quem perguntar o local exacto”, recorda, ao constatar que o GPS foi “das maiores evoluções do pré-hospitalar”, pois permite chegar a um lenhador ferido no meio do mato… Hoje, o CODU consegue indicar o local preciso da chamada, enviando as coordenadas e a triangulação do local.
A camaradagem na sala da VMER mostra a cumplicidade e confiança que existe entre todos. Não existem equipas fixas. Médicos e enfermeiros realizam os turnos sempre que podem, pois têm de os encaixar com a sua actividade assistencial na urgência ou nas consultas e internamento. A cada saída todo o material é reposto e verificado.
O mesmo acontece a cada mudança de turno. É o enfermeiro que está responsável pela verificação. Também é ele que conduz a viatura. “O curso para entrar na VMER é muito exigente e os enfermeiros têm obrigatoriamente de passar com distinção na condução, que deve ser defensiva.”
Os números
219
300
Há turnos em que a VMER percorre mais de 300 quilómetros
Como funciona?