As novas Unidades Locais de Saúde (ULS) pretendem colocar o doente no centro do sistema de saúde, permitindo que flua facilmente entre os cuidados de saúde primários e os hospitalares, aproximar os diferentes profissionais, assim como garantir autonomia na contratação.
Em funcionamento desde o dia 1 de Janeiro, a Unidade Local de Saúde da Região de Leiria (ULSRL) começa a dar os primeiros passos na uniformização do sistema informático, que irá agregar num só ficheiro todo o histórico do doente, acessível – dentro das regras de protecção de dados – a qualquer profissional de saúde, quer seja dos cuidados de saúde primários, quer seja dos cuidados hospitalares.
“O que se pretende é simplificar a vida aos doentes para evitar redundâncias, circulação entre diferentes níveis de cuidados com repetição de exames e de intervenções e com perda de tempo na transição dos doentes de um lado para o outro”, assume Licínio de Carvalho, nomeado presidente da ULSRL pela Direcção Executiva do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Além da poupar tempo aos utentes, a criação de um único processo clínico de cada doente, que pode ser acedido em qualquer instituição do SNS, contribuirá também para a poupança de custos no SNS.
“Um dos objectivos declaradamente assumido é tentar tornar os serviços mais eficientes do ponto de vista económico e garantir maior eficiência no processo assistencial, o que terá impacto em função da redução ou eliminação de redundâncias e repetição de exames e de processos assistenciais”, afirma Licínio de Carvalho.
Segundo aquele responsável, a grande mais-valia da ULSRL é “colocar o doente no centro do sistema” com os serviços a colaborarem entre si, integrando equipas comuns em torno das respostas que são necessárias dar aos doentes.
Esta integração vertical de cuidados vai “privilegiar um modelo uma governação clínica partilhada entre médicos e equipas de saúde de diferentes especialidades, no sentido de prestar maior coerência ao sistema”.
“O que se pretende é que haja um contínuo. Da mesma forma que um doente vem ao hospital a uma consulta de uma determinada especialidade e se o médico hospitalar necessitar da opinião de um colega de outra especialidade tem alguém que está próximo, o mesmo acontecerá nos cuidados de saúde primários. Pretende-se criar essa proximidade e eliminar barreiras que são perfeitamente artificiais, mas que complicam muito a vida aos profissionais”, garante.
Para Licínio de Carvalho, a proximidade que se estabelece com o doente numa ULS irá eliminar procedimentos e contribuir para a “partilha de responsabilidades, de espaço e de participação de discussão clínica, de consensualização de procedimentos clínicos, a que chamamos de governação clínica”.
Autonomia de contratação
Se a integração de cuidados prestados pelos hospitais e pelos centros de saúde nas ULS facilita o percurso dos utentes pelo sistema de saúde e pelos diferentes níveis de cuidados, reforçando os cuidados primários na resposta de proximidade e a continuidade na assistência em saúde, a autonomia que as ULS têm, diferente do que existia com os Agrupamentos de Centros de Saúde (ACeS), vai facilitar a contratação de recursos humanos.
“Da mesma forma que os hospitais EPE [entidades públicas empresariais] tinham a capacidade de contratar em prestação de serviços, recorrendo a várias formas de contratação tendentes a disponibilizar médicos assistentes para os doentes, essa capacidade mantém-se agora”, assegura Licínio de Carvalho.
Na prática, a capacidade operacional poderá ser melhorada e dar uma resposta para suprir as necessidades dos doentes no acesso aos cuidados de saúde. Enquanto os ACeS estavam dependentes de um processo burocrático mais complexo para qualquer tipo de contratação, necessitando, inclusive, de autorização das extintas Administrações Regionais de Saúde, a ULS pode contratar médicos, enfermeiros, técnicos ou assistentes operacionais mesmo que seja para colmatar ausências por baixa médica ou aposentações.
“Há possibilidade de contratar numa sexta-feira e na segunda-feira a pessoa apresentar-se ao serviço. É uma vantagem poder contratar de um dia para o outro, mesmo que seja só em tempo de substituição, até porque se sabe que o absentismo é um problema grave”, salienta o administrador.
No entanto, desengane-se quem pensa que a criação da ULS será a solução para pôr fim à falta de médicos no SNS. “Esta não é a fórmula que traga médicos para o sistema só por si. Ainda assim podemos contratar um médico que queira vir fazer apenas umas horas e dessa forma ajudamos a resolver a disponibilidade de médicos assistentes para os doentes”, reforça.
Na área da influência da ULSRL mais de 100 mil utentes não têm médico de família. “São cerca de 29% de residentes sem médico de família. Esse é um problema de fundo que vai demorar tempo, porque o mercado não tem médicos disponíveis ou pelo menos não aparecem, nem aqui nem outras geografias do País, quer na Medicina Geral e Familiar quer na medicina hospitalar”, constata.
Nos últimos cinco anos, o número de aposentações – previstas – vão continuar a crescer em 2024 e 2025, o que tem um efeito negativo na tentativa de diminuir o número de utentes sem médico de família atribuído.
Licínio de Carvalho avisa que a ULSRL vai recorrer a todas as vias disponíveis no mercado para poder disponibilizar o mais rapidamente possível horas de trabalho médico seja na Medicina Geral e Familiar seja hospitalar.
As várias iniciativas que as autarquias têm criado para a captação e fixação de profissionais de saúde na região, através de apoios para alojamento ou o pagamento de horas a médicos reformados, serão também formas de contribuir para que mais doentes tenham acesso a um profissional de saúde.
400
Região de Leiria dá resposta a
cerca de 400 mil habitantes de
dez centros de saúde, com todos
os seus polos (cerca de 70)
Também não será a criação da ULSRL que resolverá de um dia para o outro a grande afluência às urgências hospitalares. “Para fazer face a este momento, os dois directores clínicos [cuidados primários e hospitalares] estão a trabalhar no sentido de melhorar as respostas aos doentes, seja nas instalações dos centros de saúde seja nas instalações dos hospitais que compõem a ULSRL. Há estratégias que passam a ser comuns e a responsabilidade passa a ser dos dois níveis”, explica.
A resposta a este pico de infecções respiratórias, gripe e covid que o País enfrenta, típico da época invernal, não pode passar apenas pelos cuidados de saúde primários, alerta Licínio de Carvalho, que lembra que os médicos de família já têm muito trabalho.
“Não são os médicos de Medicina Geral e Familiar que vão resolver o problema das escalas do serviço de urgência, pois, depois, teríamos o problema dos agendamentos das suas consultas. Não vamos tapar de um lado e criar um problema grave do outro. Tudo tem de ser feito com muito bom senso e espírito de colaboração e de abertura”, realça.
Abaixo assinado
Quando se começou a desenhar a ULS vários profissionais dos cuidados de saúde primários subscreveram um abaixo-assinado contra a constituição deste modelo. Licínio de Carvalho acredita que a posição de alguns profissionais de saúde estava relacionada com o receio de perderem direitos ou de serem obrigados a trabalhar no serviço de urgência hospitalar.
“Talvez houvesse alguma leitura precipitada de que era uma captura de uns por outros. Nunca vimos as coisas assim. Desmistificámos algumas falsas ideias que existiam. Há culturas diferentes entre as várias instituições, mas queremos uma liderança próxima que envolva todos, o que será uma ajuda para ultrapassar as dificuldades”, diz.
Rafael Henriques, médico de Medicina Geral e Familiar em Leiria, alerta para estudos científicos realizados no âmbito de trabalhos académicos e mesmo de relatórios da Entidade Reguladora da Saúde que evidenciam preocupações com o funcionamento das ULS.
“Não houve qualquer monitorização ou avaliação às ULS que já existem há cerca de 24 anos. Seria importante perceber a eficácia do modelo. Vemos o primeiro-ministro e o ministro da Saúde a falarem muito bem da ULS de Matosinhos, mas, numa entrevista recente, o próprio administrador admitiu que o sistema não funciona”, e há relatórios que mostram que “falta integração clínica, o pilar fundamental da integração dos cuidados”, adianta o também dirigente da Federação Nacional dos Médicos e cabeça de lista às eleições legislativas pelo Bloco de Esquerda em Leiria.
Para Rafael Henriques, as preocupações que existiam quando foi subscrito o abaixo-assinado mantêm-se. “Nada mudou. O que está legislado na Lei de Bases da Saúde é a criação de uma estrutura que integre os cuidados de saúde primários e hospitalares, o que é teoricamente positivo, mas não é o que se verifica na prática, tendo em conta a experiência de 24 anos de ULS”, assume.
O grau de insatisfação dos utentes aumentou, assim como os custos financeiros com medicamentos, exames e o tempo de espera para acesso a consultas de especialidade e a cirurgias, constata Rafael Henriques.
O médico aponta ainda um crescimento no tempo de internamento, “contrariamente ao que seria esperado dada a integração dos cuidados”, e um aumento do número de idas à urgência.
Os modelos de ULS assentam em entidades públicas empresariais, que terão o mesmo bolo financeiro que tinham os centros hospitalares. “Não é possível obter melhores resultados com o mesmo. As ULS vão ter de atrair mais utentes para terem um aumento no orçamento, pelo que vão apostar em serviços como dermatologia, oftalmologia ou estomatologia, que faltam no SNS, beneficiando da livre circulação de utentes que vão procurar os serviços com menor tempo de espera”, adverte.
Desta forma, Rafael Henriques acredita que o investimento que deveria ser aplicado nos cuidados de saúde primários para a prevenção da doença serão desviados para esses serviços.
O dirigente sindical admite que a autonomia na contratação pode ser um aspecto positivo, no entanto, alerta que poderá resultar em diferentes condições de trabalho, causando problemas entre as equipas.
“Um médico pode fazer um contrato individual de trabalho e negociar o que pretende, como não realizar urgências ou só fazer ecografias”, exemplifica.
3
Agrupamentos de Centros de Saúde (ACeS) integram a nova Unidade Local de Saúde da Região de Leiria, com o antigo Centro Hospitalar de Leiria. Assim, a ULSRL integra
os hospitais de Santo André,
em Leiria, Bernardino Lopes de
Oliveira, em Alcobaça, e de Pombal, e as unidades de saúde do ACeS Pinhal Litoral, os centros de saúde de Ourém e de Fátima (ACeS do Médio Tejo), e de Alcobaça e da Nazaré (ACeS do Oeste Norte)
Esse profissional estará inserido numa equipa com médicos com 40 anos de experiência que fazem mais e recebem menos, o que causará incómodo. “Poderá ser mau para o SNS, porque haverá quem pense: é melhor sair e entrar de novo com um novo contrato”, refere.
Quanto à unificação do sistema e ao processo clínico do doente acessível a todos, Rafael Henriques afirma que nada disso vai mudar o que já existe. Os médicos de família têm acesso a algumas intervenções que possam ser feitas fora do centro de saúde. O que não existe, diz, é o doente efectuar um exame e o seu resultado ir directamente para o seu processo clínico, evitando deslocações ou ser enviado para a unidade de saúde.
“Seria simples e bastaria o doente dar acesso para o seu médico aceder na totalidade ao seu processo. Isso traria muitas poupanças mesmo financeiras”. Rafael Henriques defende um modelo idêntico às ULS, no qual possa haver autonomia de cada um dos cuidados primários e hospitalares.