Foi recentemente comunicada aos produtores que fornecem a marca Pingo Doce uma actualização de oito cêntimos por quilo, o que lhes permitirá receber um valor superior a 50 cêntimos. Em que medida este aumento vem cobrir os custos de produção?
Os 50 cêntimos, eventualmente, cobrirão grande parte das despesas. Todos conhecemos o que têm sido os aumentos do preço da energia. No meu caso, aí não somos lesados, porque temos produção de energia própria e a minha vacaria é excedentária em termos de energia. Mas, por exemplo, em termos de gasóleos, luz, regas e etc. já não é assim. Eu passei de ter no meu silo, no ano passado, uma silagem de milho a 60 euros a tonelada, para ter este ano a mesma silagem a custar- me perto de 90 euros. E ainda não sei quanto mais precisarei de recarregar. E há depois muitos subprodutos como soja, farinha de milho, os componentes da extracção de óleos de milho, todas essas matérias-primas que são utilizadas na alimentação animal e que subiram de preços. Uma brutalidade. Alguns para mais do dobro.
As explorações que não se modernizaram estão em condições mais desfavoráveis…
Os custos de produção subiram de forma brutal, variando de exploração para exploração. Se eu investi, não tenho agora esse custo com a energia. Para os outros, que não o fizeram, é tudo muito pior. [LER_MAIS]A mim, estes 50 cêntimos que o Pingo Doce oferece ir-me-iam cobrir aproximadamente os custos alimentares
E quantos animais tem de alimentar na sua exploração?
No total tenho cerca de 400 animais, dos quais 220 a 230 em ordenha. Portanto, este valor de que falam é muito pouco. Há que contabilizar as rendas das terras, as amortizações das máquinas, tudo isso. Se queremos que as terras sejam cuidadas – porque são matéria-viva, porque só temos estas e temos de as manter capazes de produzir alimentos para pessoas e animais – é preciso ter mesmo cuidado. Esse cuidado obriga-nos a adquirir ferramentas de produção mais onerosas.
Também para dar resposta às questões de sustentabilidade ambiental…
O investimento é pesado, mas tenho biogás, que nos permite produzir energia eléctrica, água quente para a exploração, permite também a esterilização de restos de matéria-orgânica, que voltamos a usar nas camas dos animais. Muito disto é o que nos habituamos a chamar de economia circular. Na minha vacaria nada é deitado fora. Os estrumes são todos aproveitados, as águas são reutilizadas nas lavagens de parques, para rega, etc. De alguma forma já previa o que estamos a viver e fui apetrechando o espaço com equipamentos capazes de melhorar os meus custos de produção. Mas isto não está ao alcance de qualquer pessoa, quer economicamente quer em termos técnicos.
No início do ano, dados oficiais indicavam que as explorações leiteiras em Portugal tinham caído 85% na última década. O cenário é idêntico na região de Leiria?
Perdermos muitas explorações pequenas, mais familiares. Muitos trabalham com os recursos humanos que têm em casa e essas explorações mais pequenas é que foram desaparecendo. Ninguém está para aguentar trabalhar 16, 17 ou 18 horas por dia, sem receber ordenado.
Mas, entretanto, o aumento do preço do leite já se nota nas prateleiras dos supermercados….
Não somos nós que determinados os preços. É o nosso comprador. São as cooperativas que determinam o nosso preço. E as cooperativas queixam- -se das grandes superfícies. Mas custa-me um pouco a acreditar nisto. Se nós temos um produto que é deficitário, se não temos leite suficiente para abastecer o País e se um dia destes nos sujeitamos a ter de ir comprar leite ao exterior e muito mais caro do que produzimos neste momento.
O abastecimento de leite está realmente em risco, como defende a Aprolep?
Sim. E a curto prazo. Há muitas explorações nacionais que estão a vender para Espanha e a preços muitos superiores, algumas delas já a vender a 63 cêntimos. É uma diferença abismal. As cooperativas dizem-nos que não conseguem transmitir os aumentos dos custos de produção para as grandes superfícies. Mas se elas não lhes venderem a um preço mais alto, as grandes superfícies não vão buscar ao estrangeiro a preço mais baixo. As grandes superfícies, os grandes distribuidores, de forma geral, asfixiam a produção seja ela agrícola ou outra. Há coisas que eles até poderão ir buscar ao estrangeiro, mas isso implica custos de carbono, transportes. Se temos de olhar a isso, temos de procurar o que é produzido de forma local.
E como tem actuado o Estado?
O Estado tem ficado a olhar para o lado e a assobiar para o ar. É a nossa sensação. Mas isto vai ter custos para os produtores e vai ter custos para os consumidores. Não há neste momento nenhuma actividade, seja ela agprodução de leite. Se queremos ter uma assistência completa aos animais, diria que tem de ser 24 horas por dia. Há muita gente a passar muito mais do que 18 horas por dia na exploração. E o consumidor já está a sofrer consequências, com o aumento do preço. E isso ainda não foi transmitido para a produção, que é quem mais sofre. A distribuição fica com o grosso e ainda por cima utiliza o leite como chamariz para outros produtos.
E no caso dos produtos hortícolas, sentem-se constrangimentos idênticos na Germiplanta?
Na Germiplanta nem tanto, mas nos clientes da Germiplanta sim. De 2020 para 2021, houve uma redução brutal de algumas espécies. Porque estiveram os produtores a perder dinheiro vários anos. Aqui foi mais grave ainda. Suponhamos que um artigo sai a 10 cêntimos da casa do produtor. Chega ao consumidor a 90 cêntimos. São margens brutais e inadmissíveis. E também aqui o Governo olha para o lado e assobia para o ar. Não é permitido em nenhum país civilizado. Em Espanha não é permitido comprar abaixo dos custos de produção. Uma diferença muito grande é que, aqui em Portugal, os intermediários, segundos membros da cadeia, não podem vender abaixo dos preços de compra, sejam eles quais forem. E até podem ser abaixo dos custos de produção. E já não é problema deles, porque já não vendem abaixo dos preços de compra. São coisas completamente diferentes e só quem pode alterar isto é o Governo. E o Governo não tem feito nada nesse sentido.
Esta nova vaga de imigrantes pode de alguma forma inverter o abandono da agricultura?
Não. As produções de leite são cada vez mais tecnológicas e os ordenados nas vacarias – estou a falar pela minha, mas creio que é o caso da generalidade – não são ordenados mínimos. Sobretudo quando há uma especialização. Mesmo que os imigrantes cheguem com alguma qualificação não lhes conseguimos transmitir as nossas necessidades. Raramente falam inglês e também nem todos os nossos colaboradores sabem falar inglês.
Seca levará Europa a repensar a rega
Uziel Carvalho é natural de Monte Redondo (Leiria), onde lidera uma empresa de exploração leiteira e outra dedicada à horticultura. É também, há mais de 20 anos, presidente da Associação de Regantes e Beneficiários do Vale do Lis, onde os constrangimentos se prendem com a falta de infra-estruturas modernas que facilitem a rega a partir do Rio Lis. Foram feitos investimentos, mas é necessário ampliá-los para evitar o desperdício de água e melhorar o aproveitamento das terras. Há vontade de avançar com melhorias, todavia a União Europeia ainda não percebe qual a necessidade de países como Portugal terem de regar. Talvez o fenómeno da seca, que já afecta países onde antes chovia todo o ano, faça a Europa olhar para a rega de outro prisma, acredita Uziel Carvalho.