Tenho, por isso, ainda uma réstia de esperança que afinal a minha, e de outros, interpretação da notícia trazida a público pelo Jornal de Notícias de 22 de Outubro não passe de um enorme equívoco, e que o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, escrito pelo juiz Neto de Moura e assinado pela juíza Maria Luísa Arantes, não passe de um embuste ou duma piada de muito mau-gosto.
Por ora, acreditando na veracidade da notícia vinculada por esse jornal e crendo ser fidedigna a cópia de um excerto do documento que é apresentada nas redes sociais, a vergonha, a indignação e o nojo que sinto perturbam-me até ao limite.
Lê-se, no malfadado documento: “Ora, o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte. Ainda não foi há muito tempo que a lei penal (…) punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse ato a matasse. Com estas referências pretende-se, apenas, acentuar que o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso se vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher. Foi a deslealdade e a imoralidade sexual da assistente que fez o arguido cair em profunda depressão e foi nesse estado depressivo e toldado pela revolta que praticou o ato de agressão (…).”
Cruéis os argumentos encontrados para justificar a sentença. Na minha vida profissional ouço vezes sem conta, vezes de mais, relatos pungentes de mulheres traídas pelos maridos. De homens, traídos, também.
[LER_MAIS] Em qualquer dos casos há sempre um estado depressivo, há sempre revolta, há, sobretudo, incompreensão e uma mágoa profunda por uma parte do investimento de intimidade relacional ter sido posta em causa e irremediavelmente perdida.
O que não há nunca é qualquer tipo de justificação para ficar toldado pela revolta que leve o sujeito à agressão. Não creio que o juiz a quem coube julgar o caso em primeira instância tenha exorbitado as suas competências e se tenha atrevido a avaliar e definir diagnóstico de estado depressivo.
Assim, sou levado a crer que um astuto advogado de defesa tenha sugerido a apreciação de um qualquer técnico de saúde mental que pariu a enormidade de um relatório que terá sido apresentado em tribunal para justificar a passagem ao ato configurada na extrema violência da agressão.
Do dia em que escrevo até à publicação deste desabafo, muito se falará deste caso e haverá explicações para os todos os gostos. Espero que um dos culpados desta barbárie seja devidamente punido: o psicólogo, psiquiatra, psicanalista, médico, quem quer que seja, a quem foi dado estatuto profissional para afirmar, em nome da ciência, que um estado depressivo justifica a agressão sobre esta e uma qualquer mulher ou homem, e assim justificar a boçalidade da primeira sentença.
*Psicólogo clínico
Texto escrito de acordo com a nova ortografia