Os que jogam de branco são favoritos e vão fazer tudo para triunfar, mas os que vestem de preto-e-branco querem que a tradição se mantenha, complicando a vida ao adversário. União Desportiva de Leiria e Atlético Clube Marinhense jogam este domingo, pelas 15 horas, pela primeira vez em quase 29 anos.
A partida é a contar para a 14.ª jornada da série C do Campeonato de Portugal, o terceiro escalão do futebol português. De um lado, a equipa de Rui Amorim, que persegue a subida à 2.ª Liga.
Do outro, a de Pedro Solá, que tem feito um Campeonato de Portugal acima das expectativas e ocupa um lugar na primeira metade da tabela, bem longe das posições que ditam a despromoção, precisamente aquilo que o clube da Marinha Grande queria, à partida, evitar.
Os percursos distintos nestas três últimas décadas fizeram com que a rivalidade acabasse por se tornar muito mais num assunto de café do que disputado no terreno de jogo, mas nestes momentos a chama torna-se intensa, até porque a ligação é umbilical. De tal forma que o Marinhense foi o clube escolhido para ser o primeiro antagonista da história da União de Leiria.
“O pessoal da Boa Vista e da Bidoeira era o mais entusiasta e até se organizava em claques. O campo estava sempre cheio e havia uma grande paixão”
Já passou mais de meio século. Foi a 4 de Setembro de 1966, no Estádio Municipal. O encontro, denominado Taça Amizade, terminou com um salomónico empate a dois golos e nessa partida houve um homem que se destacou e entrou duas vezes para os anais do clube do Lis. Orlando Rousseau, que na temporada anterior tinha jogado pelos alvi-negros, foi o primeiro a marcar pela União de Leiria e o primeiro a marcar contra a União de Leiria.
“Entrei para a história pelas melhores e pelas piores razões”, recordou, em entrevista a este semanário. Primeiro, o golo: “era rápido, lançaram-me pelo lado direito, desmarquei-me e atirei”, não dando hipótese ao guardião marinhense, Vítor. Pior foi o tento na própria baliza… “Foi um canto, aliviei mal e a bola entrou”, explicou.
Na altura, “a cidade estava empolgada” com o futebol. “Chegaram a ser colocados altifalantes na Praça Rodrigues Lobo para as pessoas ouvirem os relatos.” Das redondezas vinha forte suporte. “O pessoal da Boa Vista e da Bidoeira era o mais entusiasta e até se organizava em claques. O campo estava sempre cheio e havia uma grande paixão.”
“Lembro-me de ter jogado contra o meu grande amigo José João, já falecido, que me mandou desaparecer de perto dele, para não ter de me castigar. Eu até me ria, mas ficava longe”
Durante duas décadas, até 1990, os clubes das cidades vizinhas competiram de forma intensa e disputaram quase sempre a mesma divisão, desejaram os mesmos futebolistas e tiveram jogos escaldantes nos ambientes frenéticos da velha Portela e do original Magalhães Pessoa.
Encontraram-se um total de 22 vezes a contar para a 2.ª Divisão, com os resultados a indicarem um equilíbrio total: ambas as equipas venceram sete desafios, tendo ainda ocorrido oito empates.
“Costumo dizer que o meu clube é o Marinhense, mas tenho uma costela da União de Leiria.” Durante esse período, Vítor Manuel, conhecido na Marinha por Vítor do Talho, foi ídolo nos dois emblemas.
Começou por brilhar no clube de sua terra, de tal forma que foi considerado o melhor jogador da história dos alvi-negros, mas acabou por rumar ao grande adversário “do outro lado da linha” do Oeste, em 1977/78, já com 26 anos. “Era um ícone desde os escalões mais jovens e houve alguma resistência, não queriam que saísse para o principal rival. Mas já era profissional e aconteceu.”
Dentro das quatro linhas, Vítor Manuel teve de lidar com a opção. “Lembro-me de ter jogado contra o meu grande amigo José João, já falecido, que me mandou desaparecer de perto dele, para não ter de me castigar. Eu até me ria, mas ficava longe.”
“Sabemos da história, as pessoas falam connosco e pedem-nos para ganhar. Os adeptos mais fiéis não vão querer perder este jogo por nada e acredito que as bancadas vão ter mais espectadores"
Em Leiria esteve um total de seis temporadas, com passagens de permeio pelo Sporting, pelo Vitória de Guimarães e pelo Desportivo de Chaves. Sempre viveu com intensidade os encontros com o rival, estando de um lado ou de outro da barricada.
“Eram jogos tremendos, intensos, e que ninguém queria perder. Havia pessoas que iam de uma terra à outra a pé para verem os desafios.” Também não era incomum acontecerem “desacatos”, recorda o antigo internacional sub-21 e sub-18. “Os campos estavam cheios, ninguém queria perder e as pessoas enervavam-se e exteriorizavam como não deviam.”
[LER_MAIS] A última época que juntou União de Leiria e Marinhense foi 1988/89, já sem Vítor Manuel, que tinha abandonado no final da temporada transacta, com um triunfo dos leirienses no relvado do Magalhães Pessoa (3-0), a 9 de Outubro de 1988, e um empate (2-2) no pelado da Portela, a 7 de Fevereiro do ano seguinte, no tal último jogo entre as duas equipas.
Foi uma época para esquecer para ambos os emblemas. A União de Leiria, onde jogavam os muito jovens Palecas e Paulo Duarte, terminou longe dos primeiros, em décimo, mas pior esteve o Marinhense, que foi 16.º e desceu ao terceiro escalão, para não mais voltar.
A chama foi-se extinguido. Muita água passou, entretanto, por debaixo da ponte. Depois deste período, o clube da Portela teve um percurso descendente, que coincidiu com as graves crises económicas que assolaram o tecido empresarial do concelho, e só agora começa a recuperar.
Já a União de Leiria arrancou para um trajecto ascendente, somou quase duas dezenas de presenças no patamar mais alto do futebol português, conheceu José Mourinho e Jorge Jesus, bateu o pé aos três grandes e participou nas competições europeias. Em 2011/12 caiu em desgraça e agora, com uma nova SAD, tenta reeditar os tempos de glória de outros tempos.
Vítor Manuel garante que apesar das diferenças, a disputa vai continuar. “Na Marinha Grande dizem que a linha do caminho-de-ferro é que faz a fronteira de Portugal. Os adeptos e associados dos dois clubes não vão deixar que a rivalidade esmoreça, até porque vão falar com os jogadores sobre esta tradição.”
Como vai ser
Quando João Vieira (foto da esquerda) nasceu, há 25 anos, estes encontros emocionantes já não tinham lugar. Ele é ponta-de-lança da União de Leiria e será uma das principais ameaças ao sector defensivo do Marinhense, coordenado pelo veterano João Paulo (foto da direita), futebolista que chegou ao estrelato na União de Leiria, antes de rumar ao Sporting e ao FC Porto.
O rapaz das Cortes, que começou a jogar no emblema do castelo aos 5 anos porque a mãe “estava farta” de o ver a chutar no quintal, ainda se recorda de ter alguns encontros emocionantes com o clube da Portela.
“Quando tinha 8 e 9 anos, os principais rivais eram o Marrazes e o Marinhense”, conta. Mas depois, nos iniciados, nos juvenis e nos juniores, a União de Leiria jogava nas competições nacionais e o Marinhense, frequentemente nos distritais, pelo que “raramente” se encontravam.
Por isso, para o jogador, esta rivalidade é muito mais teórica do que prática. “Sabemos da história, as pessoas falam connosco e pedem-nos para ganhar. Os adeptos mais fiéis não vão querer perder este jogo por nada e acredito que as bancadas vão ter mais espectadores. Quanto a nós, estamos a relançar-nos após uma fase menos boa. Estamos confiantes de que vamos cumprir os objectivos.”
Precisamente para cumprir o objectivo que tem dentro de campo – colocar a bola na baliza adversária – João Vieira terá de ser mais rápido, mais forte e mais ágil do que Pedro Rodrigues, com quem chegou a alinhar nos juniores da União de Leiria e que acredita que o jogo, apesar das diferenças de objectivos, arranca com “50% de hipóteses para cada um dos clubes”.
“Eles querem claramente subir, nós pensamos jogo a jogo, com o propósito de somar sempre os três pontos. Será um jogo bem disputado, frente a um adversário com enormes tradições na 1.ª Liga. Rivalidade? Sabemos que é um jogo diferente e quando o árbitro apitar vai notar-se ainda mais.”