Tem uma carreira profissional na área das artes e costuma trabalhar com prazos precisos para entregar as suas obras. Mas, desta vez, o artista vai ter de passar as próximas semanas a pintar, de dia e de noite, tentando concluir a tempo o conjunto de trabalhos que a galeria lhe solicitou há meses.
Sabia, de antemão, que desrespeitar prazos com esta galeria lhe podia encerrar todas as portas do meio. Mesmo assim, até agora o pintor não foi capaz de colocar um ponto final nas longas horas gastas com vícios, entre os quais, o das redes sociais.
Infelizmente, o caso deste paciente está longe de ser único, explica Nuno Albuquerque. Formado em Gestão de Abuso de Substâncias na Universidade de Kent, no Reino Unido, país onde tem trabalhado nos últimos anos, o especialista leva um percurso de mais de duas décadas de tratamento dos mais diversos tipos de dependências, em clínicas de Portugal, Suíça, Reino Unido e Macau.No nosso País, continua a colaborar activamente, através do Instituto de Apoio ao Jogador (que trata adição ao jogo e outras dependências sem substância).
Quanto ao vício das redes sociais, observa o técnico, não é um problema reservado às gerações mais novas, arrastando um conjunto muito heterogéneo de adultos, dos mais diversos contextos sócio-económicos. “Tenho uma paciente, de trinta e alguns anos, que a princípio chegou até mim devido à dependência de álcool e de cocaína, também de co-dependência, e que, descobrimos depois, também estava registada em várias aplicações de convívio e de encontros. Também tem este tipo de dependência, ao qual nem sequer tinha dado valor”, conta o especialista.
“Chegam-me muitas pessoas com 30, 40 e 50 anos, entre as quais também mães e donas de casa, com muitas adições cruzadas. Falam de adição às compras, às drogas, ao álcool, mas, quando partimos para a terapia, detectamos muitas vezes que também estão dependentes de internet e de redes sociais”, relata Nuno Albuquerque.
Longe de querer diabolizar estes produtos digitais, que “têm ajudado a população a manter a saúde mental durante longos períodos de confinamento, proporcionando às crianças o contacto regular com os amigos da escola, e a ligação dos idosos com as suas famílias”, o especialista salienta que o princípio da dependência das redes sociais é exactamente como o de todas as outras adições.
“Tal como sucede com as drogas, há pessoas que usam as redes sociais na tentativa de se sentir melhor”. O problema já existe na pessoa, que usa este veículo, o não quer dizer que todas as pessoas que usem redes sociais cheguem a um quadro de dependência, frisa. E, tal como noutras adições, também esta tem um grande impacto negativo na vida de quem é dependente.Na relação conjugal, na relação com os amigos e no contexto profissional. Porque quando existe dependência, a utilização das redes sociais sobrepõe-se a todas as responsabilidades do indivíduo.
Vício não é claro de imediato
Cristina Barroso, psicóloga e coordenadora do Centro de Respostas Integradas de Leiria, refere que, apesar de crescente, continua a ser pequeno o grupo de pessoas que procura o CRI para tratar dependências de internet, redes sociais e jogo. Não só porque muitas pessoas ainda associam o apoio do CRI ao tratamento exclusivo de dependências de drogas e de álcool, mas também porque muitas famílias ainda estão pouco sensibilizadas para o facto de as redes sociais também [LER_MAIS]poderem ser utilizadas de forma abusiva.
E a pandemia, que impôs o confinamento, com intensa utilização dos media digitais para trabalho e para estudo, também tornou difícil perceber se o uso das redes sociais acontece para lá da fronteira da razoabilidade. Ainda assim, refere a psicóloga, têm chegado ao CRI de Leiria mais casos de dependência deste tipo. Não só entre as gerações mais novas, mas também jovens adultos, alguns dos quais apresentando já quadros complicados de vício, que utilizam internet até horas tardias, com grande dificuldade em parar, irritabilidade e, nalguns casos, quando se trata também de jogo a dinheiro, online, com grandes somas em dívida e descontrolo da vida pessoal, académica ou profissional.
Também Eduardo Ramadas, CEO, director clínico e director-geral do Centro de Tratamento Internacional Geral VillaRamadas, de Alcobaça, refere que esta problemática não tem surgido como principal motivo de internamento. “Contudo, é visível que cada vez mais existe um aumento da tendência para o uso da internet entre os nossos pacientes, que por vezes se apresentam com um comportamento disfuncional, com impacto no seu dia-a-dia”, observa o director- clínico, lembrando que o primeiro caso de dependência de internet em VillaRamadas surgiu em 2004.
Tal como Nuno Albuquerque e Cristina Barroso, também Eduardo Ramadas salienta que, “por vezes o uso problemático das redes sociais não é imediatamente claro” e que “os pacientes chegam sem mencionar este comportamento como sendo problemático”. Este tipo de comportamentos aditivos, realça o director clínico, “não escolhem idades nem género, sendo possível afectar qualquer indivíduo em qualquer faixa etária, profissão e estatuto socio-económico”.
Ainda assim, tem sido possível “visualizar um aumento do uso das redes sociais nas gerações mais jovens, sendo a população mais susceptível a desenvolver uma possível dependência”, nota o especialista.
Ressaca e isolamento
Apesar de poder ser difícil de detectar à partida, existe um conjunto de indicadores que remetem para o quadro de dependência de redes sociais. “Podemos aferir que estamos perante um comportamento aditivo relacionado com as redes sociais, quando o uso das mesmas interfere no dia-a-dia do indivíduo, ou seja, a partir do momento que o indivíduo descura a sua vida profissional, social, familiar e/ou outra área, de forma a despender tempo nas redes sociais”, expõe Eduardo Ramadas.
“Outro possível indicador é o desenvolvimento de sintomatologia ansiosa quando o indivíduo passa períodos de tempo sem recorrer ao uso das plataformas, o chamado período de ‘ressaca’”, prossegue o especialista. Ou seja, “quando o indivíduo passa a ser incapaz de controlar o comportamento relativo ao uso das redes sociais, e se verifica incapacidade em definir limites de uso e de respeitar estes limites”.
Instagram para acalmar
Aos 19 anos, Luísa, aluna brilhante de Medicina, leva já um ano de tratamento com Margarida Ferraz, psicóloga clínica ReCare, de Leiria. É acompanhada para tratar da ansiedade, um problema que a jovem costuma tentar dominar com uso do Instagram.
Luísa conta ao JORNAL DE LEIRIA que a exigência do curso lhe deixa pouca margem para o lazer. Quando estuda, afasta-se do telemóvel para não cair na tentação de se entregar à rede social. Mas, no tempo que sobra, a utilização do Instagram sobrepõe-se muitas vezes ao convívio com a família e com o namorado, o que origina fricções.
“Gosto de publicar fotos e vídeos. É uma forma de auto-expressão”, justifica Luísa. Foi durante a fase de confinamento, que mais tempo gastou com esta rede social. Por vezes, abre a aplicação para a fechar instantes depois. Mas não deixa de o fazer. É um hábito, um vício, reconhece a estudante.
Rita Morais, coordenadora clínica da ReCare e também responsável pela clínica Sea Yourself, na Nazaré, explica que nunca como agora recebeu tantos jovens dependentes de redes sociais, já que a pandemia e o confinamento agravaram o problema. No entanto, lamenta, como ainda não existe um diagnóstico oficial da dependência de redes sociais, esta continua a não ser considerada uma doença pela comunidade científica.
“Embora estejamos todos um pouco viciados nas redes sociais, que usamos para o trabalho e para o lazer”, há traços de dependência patológica, sublinha a técnica: “Quando uma criança ou jovem tem dificuldade em parar, quando fica frustrado, irritado sempre que tem de parar, se deixa de ir a festas com amigos para ficar sozinho a usar redes sociais, quando nem faz pausas para se alimentar”.
Além de existir uma predisposição de algumas pessoas para a adição, estes produtos digitais também têm características aditivas. “O mundo virtual é perfeito, cheio de fotos apelativas. E em vez de habitual núcleo chegado, de 20 ou 30 pessoas, permite-nos chegar a um núcleo de milhares de pessoas, causando a ilusão de que nunca estamos sós”, expõe Rita Morais.
E quando um adolescente não sabe lidar com o bom e o mau, que a vida real apresenta, torna-se um adolescente frustrado, prossegue a especialista, lembrando que cabe aos pais dar o exemplo, sabendo também eles quando é preciso desligar das redes sociais.
Responsabilidade parental
Maior responsabilidade parental é também a recomendação de Nuno Albuquerque. “Da mesma forma que ninguém abandona uma criança num parque de diversões, também não lhe pode oferecer um smartphone sem o acompanhar e ajudar a explorar esse mundo novo”, compara.
Tito de Morais, professor e impulsionador da plataforma Miúdos Seguros na Net, salienta que a utilização abusiva das redes sociais contribui para o baixo rendimento e até para o abandono escolar, causando baixa auto-estima em jovens que estão em contacto permanente com um mundo “onde tudo é maravilhoso”.
Embora os jovens prefiram redes sociais menos usadas pelos adultos, porque têm configurações mais simples ou porque podem escapar à supervisão da família, os pais não se devem demitir de acompanhar os filhos na utilização da internet. Reduzir o conhecimento do mundo ao contacto com as redes sociais é diminuir a capacidade crítica. Sendo que o assédio sexual e o cyberbullying são outros fenómenos aos quais os pais não podem deixar de estar atentos, realça o professor.
Em 2020, o cyberbullying representou 40% das queixas de bullying detectadas pela PSP. À agência Lusa, a polícia revelou que nos últimos anos se tem observado uma diminuição das ofensas “corporais e um aumento da frequência das injúrias e ameaças, estas frequentemente dirigidas como cyberbullying”.
Não sendo realista esperar que jovens e adultos vivam sem acesso às novas tecnologias, manter rotinas saudáveis com um uso equilibrado da internet, e plataformas associadas, são a recomendação dos especialistas ouvidos pelo nosso jornal.
Criada tarifa social de acesso à internet
O Governo aprovou na passada quinta-feira a versão final do decreto-lei que cria a tarifa social de acesso à internet, que permitirá a utilização “mais generalizada deste recurso e eliminar” situações de discriminação na utilização de serviços públicos online.
“Promover a cidadania digital é uma prioridade, de forma a garantir que a população em geral, independentemente da sua condição social, tem acesso a um serviço de internet que, pela sua relevância no contexto actual, deve ser configurado como um direito universal e economicamente acessível”, informa o comunicado divulgado após a reunião do Conselho de Ministros.
A tarifa deverá abranger cerca de 700 mil famílias.