Mais de 70 anos depois de a novidade chegar pela primeira vez às lojas, há um convite para reencontrar o ambiente mágico do vinil, em Alcobaça. Uma vez por semana, um convidado e um disco. E, sim, é mais do que moda ou revivalismo.
“O corpo participa activamente nesta experiência”, realça Isaac Raimundo, professor no ensino superior. “A experiência está a acontecer a partir de um objecto físico e o meu corpo está a participar nessa experiência. E é retroactiva. E, portanto, esta coisa de participar fisicamente, através dos nossos sentidos, é muito relevante”.
O investigador fala no auditório do Armazém das Artes – domingo, 21 de Janeiro – e para reforçar o argumento junto da plateia, uma dezena de pessoas, conta o seu caso com a Sinfonia N.º 5 de Tchaikovski. “Quando eu tinha quatro anos o meu pai comprou este disco para mim em Lisboa e eu cresci a pôr este disco a tocar”.
Já adulto, migrou para outra cópia, com “a mesma prensagem” e “a mesma matriz”, num sistema de alta fidelidade. “O vinho, o cigarro, o soalho de madeira, as válvulas acesas”, descreve, “a experiência sonora é na realidade este somatório de participações fenomenológicas”. No entanto, não soava igual; pelo contrário, soava mal. “Decidi escrever uma tese de doutoramento em que o centro é exactamente este”, explica. “Fui levado a perceber que ele soava-me mal porque não tinha os riscos, não tinha os erros, não tinha as deformações” do que conhecia da infância. “Não tinha aquilo que eu materializei no disco”, conclui. “A música que eu queria era aquela música deformada por aquilo que eu deformei”.
“Foi assim que comecei”
No ciclo que acontece todos os domingos, o Armazém das Artes dá a conhecer uma colecção de 800 vinis de música clássica, cedidos por Manuel da Bernarda. E desafia o público a sentar-se para escutar.
“Foi assim que comecei a ouvir música: ouvia-se o álbum, lendo as letras que vinham impressas no interior do vinil”, comenta Rita Nabais, co-autora do livro A História do Rock (para pais fanáticos e filhos com punkada).
Para a participação no Vinil à Hora, escolheu Erik Satie – L’oeuvre Pour Piano, com interpretação de Jean Joël Barbier e Jean Wiener. “Tem um tema chamado “Gymnopédie N.° 1” que é uma das peças de música mais bonitas que conheço”. E acrescenta: “O Satie foi um músico muito peculiar com uma vida incrível, era um boémio cheio de excentricidades. Foi um dos precursores do minimalismo e o inventor da música ambiente (furniture music), por isso, durante a audição do disco, fui falando (contando curiosidades do músico) por cima da música, como Satie gostaria”.
Rita Nabais mantém “uma pequeníssima colecção de vinil” a que ultimamente só tem acrescentado bandas portuguesas, mas também dá uso aos leitores de CD e cassete. E ao telemóvel, claro. “Hoje ouvem-se os singles ou as sugestões algorítmicas do Spotify ou do Youtube. Mas o que interessa é ouvir (boa) música. Todos os formatos são bons, desde que se ouça”.
“O que a arte precisa”
No Vinil à Hora, “cada sessão é por si só uma descoberta incrível”, diz a coordenadora do Armazém das Artes, Maria Manuel Aurélio. “Queremos que seja mais ou menos como ir a casa de um amigo onde nos juntamos para partilhar aquele momento”. E a assistência “também colabora”, por vezes, “o que torna as sessões muito ricas”.
Maria Manuel Aurélio seleccionou A Flauta Mágica, de Mozart. “Porque no início do meu percurso tive o prazer de fazer parte da equipa de produção que [a] levou ao palco do grande auditório da Gulbenkian” como “a primeira ópera dedicada ao público infantil”, assinala. “Creio que será mais ou menos consensual que a ária da rainha da noite será sempre incrível e impressionante de ser executada”.
A colecção doada por Manuel da Bernarda está nos arquivos “há alguns anos” e agora encontra o contexto para sair do silêncio. “O critério de escolha é absolutamente do convidado e as motivações totalmente livres. Achámos que a partir daí todas as apresentações seriam únicas”, comenta a coordenadora do Armazém das Artes. “Para além disto, gostámos muito da ideia de convidar as pessoas a usufruírem de uma audição analógica. Já serão poucas as que conseguem efectivamente parar e dedicar um tempo exclusivo a uma única actividade. Resolvemos desafiar o público e a nós próprios a termos esse tempo, o tempo de ouvir um album inteiro”.
O vinil “é uma arte a preservar”, mas a iniciativa requer “resiliência e consistência”, reconhece Maria Manuel Aurélio. “Estamos inteiramente disponíveis para nos mantermos estóicos”, promete. “Existe de fundo esta preocupação com o tempo que a arte precisa para ser conhecida e usufruída. E é esse tempo que propomos ser recuperado aos domingos no nosso auditório”.