Dois meses após o início do incêndio de Pedrógão Grande, os eucaliptos, que com as suas folhas cheias de óleo inflamável e cascas secas como papel, ajudaram a propagar e intensificaram a velocidade e os efeitos com que a tempestade de fogo se abateu, matando 64 pessoas – números oficiais – contrastam com os Homens, no seu labor para curar as feridas do fogo.
As casas das aldeias massacradas pelas chamas continuam calvas de telhados e cegas de janelas. É certo que as respostas têm chegado e já há casas reconstruídas ou reparadas noutros locais, mas a população gostava de ver maior celeridade na reconstrução dos lares. "Está tudo na mesma.
Ainda ninguém ajudou nada, ainda ninguém fez nada. Estamos à espera", diz Georgina Carvalho, 77 anos. Habita no fundo de Pobrais, localidade onde morreram 11 pessoas. A sua casa fica ao lado da pequena moradia onde um idoso perdeu a vida a dia 17 de Junho. "Coitadinho, morreu ali dentro, assado."
No pequeno pátio da casa de Georgina, tudo é limpeza e arrumação. Ninguém diria que jactos de plasma incandescente se abateram ali, ateando fogo a tudo o que não estava protegido. "Vê aquelas janelitas ali em cima", pergunta, apontando para o primeiro andar. "Foi dali que vi aquele barulho e o vento cheio de fogo a chegar. Eu e a cadela, fechadas lá dentro. O gato salvou-se sozinho."
As cadeiras onde se sentava no pátio e o telhado da casota da cadela ficaram quase completamente reduzidas a carvão. Os cortinados que tinha a secar também foram consumidos pelas chamas. Um espanta-espíritos, embalado pela leve brisa que se faz sentir no ar sufocante, lança um longo e alegre trinado, aliviando as memórias.
A sombra negra da recordação passa, desanuviando o olhar e Georgina prossegue a conversa. "Olhe, estou à espera. Estou à espera como os outros. Ainda ninguém da Câmara cá veio, mas ouvi dizer que há quem já foi a Pedrógão tentar saber alguma coisa… mas veio de lá na mesma", diz.
Após um momento de cogitação silenciosa, ajeita o chapéu negro na cabeça e adianta que ainda não é tarde, porque há casas de primeira habitação que são prioridade. Apontando para um anexo destruído pelo fogo, diz que gostava que a ajudassem a pôr as paredes no ar. "Mas ainda nada sei. Estou à espera."
“Ó Isilda, vamos morrer todos!"
Ao lado da casa de Georgina, ergue-se um alto e frondoso sobreiro, enegrecido pelas chamas. No alto da sua copa, já se podem ver verdes rebentos. A natureza não espera. "Está tudo parado e não há ajudas", diz Isilda Dias, 66 anos, prima de Georgina.
As mazelas daquele dia estão bem patentes no braço fracturado que carrega numa funda presa ao pescoço. Caiu com baldes de água na mão, quando tentava apagar as chamas num barracão carregado com lenha.
Reformada, tem ali uma casa e partilha o tempo entre Pobrais e Sintra. "Tinha muita floresta, mas fiquei sem nada. Felizmente, fiquei viva. Foi deus nosso senhor que nos guardou. Ninguém imagina o que a gente aqui passou", garante.
Em minutos, conta, o dia transformou-se em noite, como se o Apocalipse estivesse para chegar e ouvia trovões muito perto. "Uma vizinha disse-me: 'ó Isilda, vamos morrer todos. Não ouves o barulho?' Eu pensava que aquele barulho era chuva que vinha, mas era o tornado de fogo."
Sem bombeiros por perto, o marido, Idalino, correu a salvar as arrecadações no quintal e Isilda foi para a varanda com uma mangueira, para apagar o que começasse a arder. Ficou sem água ao fim de três minutos. Foi o que a salvou.
Saiu dali para ver o que se passava e uma língua de fogo varreu o sítio onde estava. "Eram labaredas de não sei quantos metros a passar por cima da casa. Se a água não acaba, nem me apercebia do lume a chegar e morria queimada. Eram pedaços de chamas que vinham pelo ar e entravam pelas telhas."
Nenhuma das duas viu os vizinhos que tentaram fugir de carro pela EN236 e que foram encontrar aquilo que ninguém quer. O fantasma do fogo e os nervos em franja continuaram a moer a mente aos habitantes, nos dias que se seguiram. Isilda diz que ficou "escangalhada da cabeça", não conseguia dormir e, quando olhava para os sofás, via chamas a despontar deles. O marido teve de os colocar na rua para a acalmar.
"Via as chamas à minha frente e não dormia. Procurei apoio psicológico em Sintra. Nos dias a seguir, quem é que tinha cabeça para fazer alguma coisa?", pergunta Isilda. Ainda hoje, as conversas dos dias vão bater sempre no mesmo assunto e não saem dali, presas àquele passado, omnipresente.
“Quando chegarmos a compor a vida, batemos a caçoleta”
[LER_MAIS] Alzira Quevedo, 76 anos, o marido, Álvaro Santos, 80 anos, e o sobrinho, Jorge Dias, 48 anos, estão de resguardo, à meia-luz, na cozinha da casa com o portão de ferro, datada de 1966, à entrada de Pobrais. O calor que se faz sentir lá fora a esta hora aconselha a cuidados.
Perderam o lar de uma vida, na Barraca da Boavista, mesmo ali ao lado. Ficaram com a vida e com a roupa do corpo. Vivem agora na moradia emprestada de uma vizinha, que é prima de um primo de Alzira. "A senhora que não é minha parente mas emprestou-nos a casa". Na Barraca, arderam duas casas. A do "ti Álvaro e da Alzira da Barraca" foi uma delas.
À pergunta sobre como têm sido os dois meses, Alzira responde com um lacónico: "ponha-se no nosso lugar…" Está cansada de falar e de contar o que aconteceu naquele sábado. Uma bola na garganta obriga a pausas e os olhos enchem-se de lágrimas. "O coração chora ao ver as coisas por que tínhamos tanta estima queimadas e negras", diz, abanando a cabeça.
Gostava de ter a casa cheia para partilhar com as visitas que apareciam para "beber um copo" e comer "uma bucha". Agora essas alegrias parecem-lhe que não fazem sentido. "Temos tido ajudas de pessoas de todo o País. Deram-nos comida, roupas… Até o dinheirito e o ouro que tínhamos, ficou no fogo. Se não ficou, alguém o lá foi buscar." Neste momento, só pedem uma coisa: voltar para casa.
A Caritas já os contactou para reconstruirem o lar, mas já começam a ficar cansados de tão poucos resultados e sentem-se sem forças para recomeçar do zero. "Quando chegarmos a compor a vida, batemos a caçoleta e levam-nos para o quintal do padre."
Também o prometido apoio psicológico nunca aconteceu. Ficou pela promessa. "A minha cabeça não anda boa… Ando a tomar uns comprimidos. Fui ao médico, anteontem, e ele diz que isto é dos nervos. Vamos resistindo até que Deus queira", diz Alzira.
Com revolta na voz, dizem que nunca viram o presidente da Câmara por ali e que ninguém da autarquia os contactou. Só a Caritas e a Misericórdia lhes batem à porta e o presidente da Junta de Vila Facaia, que os tem visitado a oferecer ajuda.
Álvaro, sentado à mesa da cozinha que serve de armazém para o pouco que lhes vai chegando, suspira de tristeza e ostenta as feridas desse dia. A alegria e as graçolas, por que era conhecido, fugiram-lhe do rosto e das conversas. Não se conforma. "Nem parece ele. Calado. Triste…" Ficou com as mãos queimadas ao fugir da brasa que lhes levou a casa, o cão e o gato, as galinhas, os coelhos, o vinho, o pomar, a horta, as batatas, o azeite e o carro. Uma vida construída em comum ao longo de quase 60 anos.
O fogo só não lhe levou a vida por milagre. Juntamente com o sobrinho, que mora com eles há sete anos e é utente da Cercicaper, tentaram fugir de carro, mas ao entrar no automóvel a tempestade de fogo caiu-lhes em cima.
"Caí de borco, com as mãos à frente, mesmo no meio das chamas. Queimei as mãos e nem fiquei com a roupa do corpo. Fiquei só com os sapatos que tinha nos pés." Esteve três semanas internado na Unidade de Queimados, em Coimbra, onde sofreu vários transplantes de pele. Com 80 anos, quase não consegue abrir e fechar as mãos.
"Pensei que o meu marido tinha morrido queimado. Fugi com o Jorge, porque, ali, não havia ninguém por ninguém. Não havia hipótese de acudirmos a ninguém, se não morria tudo", recorda. Refugiaram-se em casa de um vizinho e, de lá, Alzira viu a casa e os carros na rua a arder. Gritava pelo marido, de quem já se sentia viúva. Mas um enfermeiro de Vila Facaia passou de carro e valeu a Álvaro. "Se não é aquele senhor, eu teria morrido lá. Já estava… pronto… conformado."
Quando o fogo amainou, Alzira procurou Álvaro. No largo da aldeia, os carros ardiam e não se viaviv’alma. Numa garagem, no meio de várias pessoas de outras aldeias vizinhas que ali se haviam refugiado, encontrou o marido, a um canto, a suplicar que o levassem ao médico.
"Lá fora, estava tudo a arder. Na estrada onde morreu aquela gente toda, era um barulho de coisas a estoirar e tudo a arder. Só de via fumo negro. Era o inferno. Liguei a um primo que vive no Porto e ele disse que ia pedir a quem fosse socorrer o meu marido e assim foi. Passados dez minutos, os bombeiros de Samora Correira chegaram e levaram-no para Coimbra."
Com a situação a acalmar, os vizinhos foram tratar de salvar o que podiam. "Fiquei sozinha a chorar, na rua, mais o meu Jorge. Um vizinho ofereceu-lhe a casa, mas Alzira preferiu ir para a do do primo em Pobrais. Chegou lá, de boleia, numa carrinha queimada.
Ficou aí três semanas e quando o marido teve alta do hospital, mudaram-se para a casa emprestada. Mas o casal sente-se desenraízado. Alzira não abre as gavetas nem os armários da casa e organiza o que lhe vão dando em pilhas. "É muito esquisito morar na casa de outras pessoas."
Regressar para quatro funerais
Isidro Nunes, 76 anos, emigrante em Colónia na Alemanha há mais de 50 anos, regressou a Pobrais para assistir a quatro funerais de familiares que morreram na EN236. A cunhada e o marido, o filho do casal e a mulher.
Em frente à sua casa, erguem-se as ruínas carbonizadas do n.º 16, lar da família morta por chamas que queimaram tudo à velocidade de um tiro de canhão. "Estava em casa, na Alemanha, a ver televisão quando passaram as primeiras notícias sobre um grande incêndio em Pedrogão, onde tinham morrido muitas pessoas, mas nunca pensei que tivesse sido aqui", recorda. Tentou contactar alguém na aldeia, mas não conseguiu.
No dia seguinte, a filha deu-lhe a má notícia. A casa da Fátima, a cunhada, já não existia e, pior, ela, o marido, o filho e a nora tinham sido apanhados pelo fogo, quando fugiam de carro.
"A minha filha veio nessa segunda-feira e eu cheguei na quinta, a tempo dos funerais. Da minha casa, só ardeu a erva em volta e o calor condenou a produção das árvores de fruto. "Sempre que cá vinha de férias, olhava para os pinheiros aqui ao lado e pensava: 'se, um dia, aquilo pega fogo, isto arde tudo'". Perdeu 50 eucaliptos, mas não vai replantá-los. "As pessoas vivem muito das plantações dessas árvores, porque as reformas não chegam."
Nos dois meses que hoje se marcam, Isidro Nunes não viu quaisquer entidades oficiais ou autárquicas na aldeia. Daquilo que tem visto, garante que tem havido muita ajuda com comida e roupas às pessoas de Pobrais. "Os quintais secaram e, este ano, não vai haver vinho, batatas ou azeite. Os campos estão todos queimados ou secos."
Os poucos habitantes que têm obra a decorrer são os que accionaram os seguros, segundo contaram a Isidro. Os restantes esperam.