Quando aparece pela primeira vez, em Junho de 1875, com o nome escrito na perna esquerda, já é a personagem completa. A estreia – pela mão de Rafael Bordalo Pinheiro no periódico satírico A Lanterna Mágica – “tipificou o Zé Povinho para todo o sempre”, comenta o designer Jorge Silva. “Uma vítima dos desmandos da governança política e, sobretudo, na perspectiva de ser espoliado”.
O que explica a imortalidade? Da monarquia à república, da ditadura à democracia, o “tipo pacato, pachola” e “meio estúpido” que “faz parte do imaginário” e do “património” português atravessa três séculos e sucessivos regimes, nos jornais, na cerâmica, no teatro e, agora, nas redes sociais, como símbolo de resistência – o famoso “toma” – e reflexo da indignação.
“Enquanto houver explorados e oprimidos”, o homem de chapéu, colete e camisa branca inventado por Rafael Bordalo Pinheiro “tem sempre um papel”, arrisca Jorge Silva. “É uma das coisas fantásticas do Zé Povinho, essa capacidade que ele tem de ainda hoje significar uma coisa, embora, se a gente quisesse reparar bem na criatura, é anacrónica”.
Volvido um século e meio, estão lá os traços do primeiro desenho. “Um sofredor, uma espécie de eco da nossa condição de governados”, que “simboliza crítica ao governo”. Outras vezes, “um árbitro”. Porém, “raramente se revolta, raramente toma a iniciativa”.
Zé Povinho 1875 – 2025 inaugura-se no próximo sábado, 28 de Junho, no Centro Cultural e de Congressos de Caldas da Rainha, com curadoria de Jorge Silva, para celebrar “a figura maior da sátira portuguesa”. Além de Rafael Bordalo Pinheiro, estão ali representados outros grandes nomes do humor gráfico, como Stuart Carvalhais, José Vilhena, João Abel Manta, André Carrilho, Cristina Sampaio, Luís Afonso e António. E, por outro lado, ceramistas de Caldas da Rainha que em 2025 continuam a moldar a personagem.
A exposição faz parte do Salão Bordallo 2025, que também inclui duas mesas-redondas, três exposições em escolas do concelho e uma exposição na biblioteca municipal.
A exposição no CCC que abre este fim-de-semana “toca as duas grandes áreas de trabalho de Bordalo Pinheiro: a cerâmica e a produção gráfica”. Segundo Jorge Silva, “o que tem de diferente é um upgrade daquilo que já foi feito noutros tempos e por outras pessoas”, com “actualização até aos dias de hoje” – não só o Zé Povinho por Rafael Bordalo Pinheiro, depois continuado pelo filho, mas a utilização do Zé Povinho em todas as épocas. “O mais recente, saiu há três semanas ou quatro, um cartoon no Público da Cristina Sampaio”.
Logo em 1878, Sebastião Sanhudo. “Não é seguro, a 100 por cento, que tenha sido o primeiro, mas é, talvez, o primeiro conhecido”. E muitos outros, a seguir, lhe copiaram o exemplo. “O Zé Povinho passou a ser uma espécie de propriedade sem copyright”, explica Jorge Silva. “Isto diz da universalidade e da pontaria que o Bordalo teve”.
De “labrego” e “tosco” a elemento “simbólico” e “tradicional”, a verdade “é que o Zé Povinho se tornou um território quase abstracto para todas as gerações seguintes de cartoonistas”. Sobretudo, “em períodos de maior convulsão política”, como no final da monarquia e durante a Primeira República, em que “há milhares de zé povinhos feitos por outros autores”.
Rafael Bordalo Pinheiro, que embora nascido em Lisboa tinha uma ligação profunda a Caldas da Rainha, por via da fábrica de faianças instalada em 1884, deu-lhe forma “não só para bater no poder, e nos poderes que se iam sucedendo, mas também com alguma amargura por uma espécie de mansidão e até abandono, desprezo, pela vida política”, aponta Jorge Silva. “Uma das figurações do Zé Povinho que ainda hoje se pratica, mas que o Bordalo usou e abusou, é dele a dormir a sesta”.
No geral, “ele é uma testemunha passiva de todas as patifarias que lhe fazem”. Com ar “alarve, acrítico, ignorante”, um “analfabeto” que “não percebe praticamente nada daquilo que se passa”. Nesta característica, pode reconhecer-se censura “ao povo português” e “um espelho incómodo, desconfortável”.
Em declarações à agência Lusa, o director do Museu Bordalo em Lisboa considera que o Zé Povinho, enquanto chamada à participação, contém “uma mensagem para estarmos sempre atentos”, porque “a Democracia tem de se construir todos os dias”. João Alpuim Botelho salienta que Rafael Bordalo Pinheiro “não diz ‘os políticos são todos iguais’, como os populismos que ouvimos hoje”, mas visa “situações concretas”.
Sempre vivo na cultura visual portuguesa, embora não consensual. Domesticado pelo Estado Novo, “nalguns casos, passa-se para o lado do sistema e do governo” e evidencia-se “colaborante”. A seguir ao 25 de Abril, prova de que “era universal”, foi usado “pela esquerda e pela direita”, diz Jorge Silva. Como décadas antes, por republicanos e monárquicos.
Patente até 28 de Setembro de 2025, Zé Povinho 1875 – 2025 é uma iniciativa da Câmara de Caldas da Rainha e do CCC. Constitui, segundo o curador, uma homenagem ao “maior artista do século XIX português”, Rafael Bordalo Pinheiro.